Cantar as Janeiras no concelho de Almada

A tradição das Janeiras volta a cumprir-se este Sábado, dia 7 de Janeiro, no Mercado Municipal do Feijó das 10h às 12h, com actuações de vários grupos corais e musicais do concelho. A organização é da Junta de Freguesia Laranjeiro Feijó. Pode ver o programa completo na imagem abaixo.

©DR / Programa completo das Janeiras no mercado Municipal do Feijó

Também no Sábado, dia 7 de Janeiro, irão celebrar-se as Janeiras no Solar dos Zagallos, na Sobreda, a partir das 18h30.

Organizada pela Câmara Municipal de Almada em parceria com grupos musicais e corais do concelho de Almada, esta comemoração vai contar com várias actuações dedicadas à quadra festiva e encerra o Feliz Almada 2022. A entrada é livre até à lotação máxima do espaço. Pode consultar a programação completa aqui.

Já na União das Freguesias de Almada, Cova da Piedade, Pragal e Cacilhas, as Janeiras cantaram-se ontem, Sexta-Feira 6 de Janeiro, com o executivo desta União Freguesias e as Cantadeiras de Essência Alentejana, a percorrerem as ruas, estabelecimentos comerciais e, equipamentos sociais.

A História das Janeiras no concelho de Almada, por Alexandre Flores

Cantar as “Janeiras” é uma das tradições antigas em Portugal. A sua origem remonta à Antiguidade Clássica, no período da ocupação romana. Nos deuses da mitologia romana, contava-se Jano (do latim: Janus ou Ianus), como o porteiro celestial, sendo representado com duas cabeças, simbolizando o passado e o futuro, a transição, como deus das portas, das passagens, que as fechava e abria no regresso. Era o responsável por encerrar o ano velho e abrir as portas para o ano novo. Para mais, é do seu nome que deriva a denominação de Janeiro, o primeiro mês do ano. Invocava-se no início de um novo período, na esperança de serem afastados os maus espíritos. Em honra do deus Jano se cantavam então as “Janeiras”, desejando as “Boas Entradas” ou um “Bom Ano”, como afirmavam os romanos no começo de cada ano.

O Cristianismo assimilou e transformou a tradição pagã na anunciação do nascimento do Menino, passando a desejar um feliz ano novo e alargando-se até ao “Dia de Reis”. Segundo a tradição cristã, o dia de Reis terá sido o dia em que Jesus Cristo, recém-nascido, recebeu a visita de alguns magos do Oriente que, segundo o hagiológico, foram três Reis Magos, sendo o dia em que encerram os festejos natalícios e se desfazem os presépios.

O cantar das “Janeiras” é, sem dúvida, a componente mais rica do «Cancioneiro Popular Português». No ancestral cantar das “Janeiras” está contido todo o espírito popular, a criatividade, a fé, a alegria e o escárnio. Não obstante as heterogenias regionais é, no entanto, comum a todo o País a composição de pequenos grupos, normalmente acompanhados de instrumentos musicais (como: bombo, ferrinhos, gaita de beiços, flauta, concertina, etc.), que percorrem os mais variados lugares da sua freguesia ou vila, batendo às portas e entoando loas religiosas à mistura com quadras de índole popular. As pessoas cantavam e tocavam para anunciar o nascimento de Jesus e desejar um feliz Ano Novo.

No concelho de Almada, o “Cantar as Janeiras” era, até ao “Estado Novo”, uma das principais tradições nas comunidades rurais e marítimas, da Caparica, Vila Nova de Caparica, Sobreda, Charneca de Caparica, Trafaria, Porto Brandão, Costa de Caparica. Na vila de Almada, Piedade, Mutela, Romeira, a tradição já não era tão acentuada, desde as décadas de 1860/70 até ao aos princípios do “Estado Novo”, passando pelo período da Primeira Republica, devido à forte industrialização, com destaque para a indústria corticeira, ao movimento operário e aos ideais do anticlericalismo, republicanismo, anarquismo. As festividades faziam-se de forma espontânea, por jovens e adultos de sexo masculino e feminino que saíam pelas ruas e azinhagas. Não havia então os grupos corais.

Estas manifestações musicais, de cariz popular e religioso, eram levadas a cabo por vizinhos que, após a combinação e formação do grupo, da distribuição elementar das letras e dos instrumentos, se juntavam e iam cantar de porta em porta pela vizinhança.

Nos meios rurais e sobretudo nos núcleos marítimos, onde a religiosidade era mais profunda, havia, em alguns anos, o “Cantar ao Menino”, mais ligado ao religioso que era só cantado nas igrejas e capelas locais. Ao contrário, o “Cantar as Janeiras e os Reis” era sempre na comunidade (fora das igrejas), tendo em conta as características das quadras que eram cantadas, as chamadas “chacotas”, alusivas aos votos de felicidade, de sorte e de saúde para os donos das quintas e casas mais abastadas. Na imprensa almadense, dos finais do século XIX e princípios do XX, compulsamos algumas situações de miséria nas pessoas de famílias pobres que integravam os ditos grupos que iam cantar as “Janeiras”, para receberem, por exemplo. bocados de pão para matar a fome.

O cantar das “Janeiras” visava alcançar dos proprietários ou residentes das casas dispersas na região algumas ofertas, desde o pão ao chouriço, passando por outros produtos alimentares, como: nozes, figos, doces e sobras da festa do Natal. Nos meios rurais da Caparica, Murfacém, Vila Nova, Lazarim, Sobreda e Charneca de Caparica chegaram a receber, ainda no século XIX, “uma pinga de vinho” e, raramente, meio copo de aguardente para “proteger” os cantadores do frio e da humidade da noite. Uma vez ou outra, dava-se dinheiro, embora não fosse essa a tradição.

Os grupos prosseguiam as suas marchas nocturnas, à luz de candeias ou archotes, feitos de esparto e cobertos de breu. Quando chegavam às casas quebravam o silêncio com música e cantares populares até altas horas da noite.

Cantavam quadras, conforme os usos e costumes trazidos pelos habitantes que emigraram à procura de trabalho, desde os séculos XIX e XX, de vários pontos do País, principalmente, do Alentejo, do Algarve, da Beira Baixa, de Lisboa e arredores para o concelhos de Almada, Seixal e arredores.

As músicas utilizadas eram, em grande parte, já conhecidas, embora as letras pudessem ser diferentes de lugar para lugar. São músicas muito simples, à volta de quadras populares que louvam o Menino Jesus, Nossa Senhora, São José e os proprietários ou residentes que contribuíam com as ditas ofertas. Porém, chegavam a cantar quadras insultuosas dedicadas aos moradores que não abriam as portas e não davam as “janeiras ou reis”. Em alguns casos, sobretudo nos núcleos urbanos, de implantação industrial, os residentes mais endinheirados eram contemplados com canções de chacota, por vezes, com cenas tristes e achincalhantes.

No fim das caminhadas, pelos meios urbanos, rurais e marítimos da Margem Sul, as ofertas recebidas iam para o saco comum de cada grupo que depois eram repartidas, em espírito comunitário, pelos cantadores.

Esta tradição, esteve muito enraizada até os princípios do “Estado Novo”, mas as “Janeiras” vieram, posteriormente, a perder o seu enfoque popular. No entanto, as cantigas continuaram a recordar as “Janeiras” de tempos passados que, à semelhança de outras tradições do calendário, litúrgico ou não, eram sempre esperados e celebrados com alegria e alguma fé nas comunidades.

As festividades tradicionais alusivas às “Janeiras”, em Almada, diluíram-se, desde os meados da década de 1960. Tudo o que tinha esta tradição, de âmbito popular e religioso, até à primeira metade do século XX, porque era produto geracional da imaginação espontânea do povo, perdeu, em parte, o esplendor de outrora nas gentes do concelho.

As festas foram, salvo raras excepções, desde o final da década de 1970, “substituídas” por outras festas quase “oficiais”, promovidas pelas associações e colectividades de cultura e recreio, com o aparecimento de grupos corais que sempre estiveram alheados do tipo de cantos em torno das “Janeiras” e dos “Reis”. Segundo alguns antropólogos, parece ter havido alguma “recusa” em participar neste tipo de cantares. Só, há cerca de duas décadas, é que os grupos corais e outras associações musicais, de âmbito etnográfico, começaram a participar nestes cantares tradicionais. Nos nossos dias, os grupos de corais passaram a conhecer os temas alusivos às “Janeiras” e aos “Reis”, e trabalharam-nos de forma diferente,.

A Câmara Municipal de Almada tem vindo a promover, desde há alguns anos, a tradição das “Janeiras” no Solar dos Zagallos (Sobreda), com importante recepção na comunidade. Em cada ano, por volta dos dias seis ou sete de Janeiro, costumam participar dezenas de grupos corais, etnográficos, alguns dos quais, provenientes de outros concelhos e tunas académicas do concelho de Almada. A festa, em torno do “cantar as Janeiras”, decorre depois, nos dias seguintes, com a animação de vários grupos em espaços de encontro pelo concelho, tais como as associações, instituições de solidariedade social, colectividades de cultura e recreio, igrejas, ruas, praças, juntas de freguesia e escolas.

«Ó da casa nobre gente
Que escuteis e ou vireis
Acordai do vosso sono
E vinde ouvir o Santo rei»

«Vimos cantar as Janeiras
Boas Festas desejar
Que tenha muita saúde
No ano qu`está a entrar»

«Viva lá o Sr. (o nome do residente da casa)
Os anos que Deus quiser
Viva também uma rosa
Que Deus lhe deu pra mulher»

«A senhora desta casa
Calçadinha de cortiça
Venha nos dar as Janeiras
De pãozinho, ou de linguiça»;

«Viemos de muito longe
Temos fome, temos frio
Venham os donos cá fora
Que ainda ninguém os viu»

«A noite está quase no fim
Venham lá ouvir a gente
Se mais nada tem para dar
Traga um copo de aguardente»

«Senhora que está deitada
Deixe-se estar que está bem
Mas venha nos dar as janeiras
Por alma de quem lá tem»

«Com amizade
Agradecemos
E pra o ano
Cá voltaremos».

(Leia o texto completo em: Almada e suas Tradições- As “Janeiras “, in https://www.facebook.com/alexandreflores.7355/ )

Sofia Quintas

Directora e jornalista do Almada Online

, , , , , , , , , ,