E o rio, pá?

Território estranho, este. O rio serve de ponte e obstáculo em simultâneo. O mesmo que nos conduz às praias, o mesmo que nos leva ao trabalho, um amuo almadense com o rio, que teima ser barreira, quase que como numa guerra. Cacilheiros belos, motivo de fados, aguarelas e chacota pelas suas disfuncionalidades evidentes. Um “cadáver” industrial com um colossal e glorioso, podre e decadente pórtico Lisnave, mais território vedado por descontaminar. Um Ginjal cheio de esperança em ruínas. Um muro de Berlim no Seminário contíguo ao Cristo Rei, que os almadenses lamentam estar a vê-lo pelas costas. A Quinta da Arealva que…enfim. Esta margem ficou adiada. Porquê? Cresci a ver o pórtico a passear diariamente entre Cacilhas e a Piedade. Ia lento, era visto em todas as zonas ribeirinhas, do Barreiro ao Seixal, saltava à vista no Bairro Alto, Rua do Alecrim. Vermelho, ferrugento a imprimir navios de grandíssimo porte. Cheio de pequeninos milhares de operários a soldar, escarafunchar, decapar. A encher a cidade de poeira preta e a entupir os bares de Cacilhas de marujos cheios de mar. Queriam as giletes e necessaires do Canecão e as outras coisas em bares de varão. Era uma louca peregrinação. E era castiço!

A todos os leitores, começo por apresentar esta reflexão que se desenvolverá em vários artigos, cuja temática assenta na relação da cidade com o rio, aprofundando o usufruto dos seus habitantes com o mesmo, estendendo-se num capítulo final à costa atlântica. 

1. Fóssil urbano

Designei de “fóssil urbano” as estruturas actualmente abandonadas e que anteriormente serviam a sua função com indústrias, tais como a antiga Lisnave ou o complexo mais antigo do Ginjal. “Fósseis urbanos”, assim por mim considerados por não servirem o seu uso na actualidade, mas revelarem a sua existência histórica sem que estejam disponíveis para a população em geral ou para qualquer intuito integrado na estrutura da cidade. Estão ao abandono.

Permanecem apenas em stand-by, à espera dos sucessivos projectos por concretizar, alguns deles megalómanos e, na minha opinião, sem fundamento no contexto da cidade. Devo referir que são dois casos distintos, que merecem diferentes reflexões. Tais como a vasta área do Seminário contiguo ao Cristo Rei e da Quinta da Arealva, de que falarei mais adiante.

Em todos estes casos, a população almadense está privada do usufruto do rio e de uma imensa parcela de território, na minha perspectiva, sem justificação plausível.

Existe um potencial imenso nestas estruturas, deveriam ser pensadas e readaptadas de uma forma faseada e coerente com a vida da cidade, não esquecendo o seu enquadramento com a área metropolitana de Lisboa. Parece que as descontinuidades funcionais ao nível dos transportes fluviais, e não só, fomentam um distanciamento entre estes vários Concelhos, não permitindo uma saudável proximidade entre populações, que mesmo distintas em termos culturais, sociais, urbanos, poderiam complementar-se mantendo a sua própria identidade. Assim sendo, tudo conflui para Lisboa, que nos últimos anos parece pretender expulsar os seus habitantes pela forma como as rendas e os preços adjacentes ao turismo, as “finas e muito caras” ofertas na restauração etc., remeteram a cidade das muitas aldeias para um carrossel de vaidades. Perdeu-se muito com tal opção, uma vez que este bulling permanente é adverso à sua hospitalidade para com os visitantes. 

Por outro lado, é muito bonito reclamar a maior utilização dos transportes públicos, quando grande parte das vezes não existe uma cobertura real e eficaz de toda a malha urbana, especialmente para quem trabalha.

Feita esta introdução, convido todos os leitores a acompanhar estas reflexões, que na próxima edição, apresentará algumas ideias concretas que venho a desenvolver há duas décadas e que, acredito serem propostas a apreciar pela comunidade e decisores políticos.

, , , ,

João Lima

Arquitecto, músico e ilustrador, residente na cidade de Almada.