Encerramento da escola da Fonte Santa: um enorme retrocesso civilizacional!
A Escola abrange uma comunidade escolar que ultrapassa largamente as fronteiras da Freguesia da Caparica onde se encontra instalada, sendo os seus alunos oriundos de diversas freguesias, incluindo fora do Concelho de Almada. Este facto, aliado ao preenchimento integral das vagas que disponibiliza, atesta, por si só, a confiança que os pais e encarregados de educação, e a comunidade educativa em geral, colocam na qualidade do ensino assegurado naquela escola.
Uma escola, pequena (talvez…) na sua dimensão física, mas enorme (em absoluto) no seu projeto educativo, na ligação às pessoas, à comunidade educativa e à comunidade local, enorme no trabalho comunitário que a caracteriza, e que vai muito além da sua primordial função que é ensinar, tem estado – infelizmente não pelas melhores razões – no centro de debate político em Almada.
A Escola Básica do 1º Ciclo com Jardim-de-Infância da Fonte Santa, situada bem no coração da Freguesia da Caparica, em área privilegiada do ponto de vista ambiental e humano, recebeu, no início do processo de preparação do novo ano letivo de 2024/2025, a “sentença de morte” proferida, incompreensivelmente (assumo, desde já, esta declaração de interesses) pela Câmara Municipal de Almada, que, com objetivos muito mal definidos e ainda pior explicados, pretende encerrar toda a atividade desta Escola já a partir do próximo ano letivo.
Importa deter-nos nesta questão com algum detalhe, para que entendamos de que trata, exatamente, esta decisão da Câmara Municipal.
A Escola Básica do 1º Ciclo e Jardim-de-Infância da Fonte Santa foi construída em 1958 em meio rural, característica que ainda hoje mantém. O edifício onde se encontra instalada integra uma sala de aulas para o 1º ciclo do ensino básico e uma sala de atividades para Jardim-de-Infância. Está integrada no Agrupamento de Escolas do Monte de Caparica.
A Escola da Fonte Santa alberga atualmente 42 alunos, um número que representa a ocupação da capacidade máxima admitida por lei para aquelas instalações escolares, tanto na valência de jardim-de-infância, como na valência de 1º ciclo do ensino básico.
A Escola abrange uma comunidade escolar que ultrapassa largamente as fronteiras da Freguesia da Caparica onde se encontra instalada, sendo os seus alunos oriundos de diversas freguesias, incluindo fora do Concelho de Almada. Este facto, aliado ao preenchimento integral das vagas que disponibiliza, atesta, por si só, a confiança que os pais e encarregados de educação, e a comunidade educativa em geral, colocam na qualidade do ensino assegurado naquela escola.
A localização da escola em espaço eminentemente rural, e as características físicas e arquitetónicas do edifício e do espaço envolvente, confere àquele equipamento de ensino uma especificidade própria, possibilitando, não apenas às crianças que a frequentam, como aos profissionais que as ensinam – e aos próprios pais e encarregados de educação –, a possibilidade concreta de uma vivência muito rica, diversificada, e infelizmente rara na grande maioria das escolas contemporâneas.
Não podemos, também, ignorar o papel de extrema importância que a existência e funcionamento desta escola assume no âmbito do desenvolvimento de estratégias de combate ao isolamento das populações. A eventual perda deste elemento identitário da comunidade local significará, com toda a probabilidade, uma perda idêntica ao nível dos direitos de todos os membros dessa comunidade.
Pois bem, face a toda esta realidade, e assumindo uma posição de absoluta “cegueira” e incompreensível intransigência, a Câmara Municipal de Almada, em particular a sua Presidente e a Vereadora responsável pelo pelouro da Educação, “decretam” a eliminação daquela escola, procurando fundamentar a sua posição em argumentos a um tempo profundamente incoerentes, e a outro tempo de grande fragilidade, evidenciando uma angustiante opacidade das razões que conduziram a esta decisão, e maior opacidade ainda relativamente aos seus objetivos reais.
É confrangedor perceber que para justificar uma postura que se confronta com uma enorme, consistente e fundamentada oposição de toda a comunidade educativa – e mesmo para além dela –, Vereadora e Presidente não hesitem em dizer uma coisa e o seu absoluto oposto, na mesma frase e em poucas palavras.
Tão depressa afirmam que a Câmara Municipal, e naturalmente elas próprias, não tem competências em matéria pedagógica, como logo a seguir apontam como razão determinante para a sua decisão argumentos eminentemente pedagógicos! Tão depressa afirmam que não se imiscuem em questões de natureza pedagógica, como afirmam que a escola tem de encerrar porque funciona com os quatro níveis do ensino básico numa única sala de aula, o que é, obviamente, uma questão eminentemente pedagógica.
É incompreensível – e profundamente insultuoso para toda a comunidade escolar –, por exemplo, ouvir a responsável pelo pelouro da Educação na Câmara Municipal de Almada (mas também a sua Presidente), afirmar, sem um pingo de vergonha, que aquela é a última escola do Concelho de Almada que funciona segundo o “modelo do Estado Novo”.
Desconhecerá a Sr.ª Vereadora responsável pelo pelouro da Educação em Almada, em pleno século XXI, cinquenta anos após a Revolução de Abril, que o modelo do fascismo (do fascismo, sim, deixemo-nos de eufemismos bacocos) era o modelo em que os meninos iam à escola até à 3ª classe, as meninas nem tanto, para depois irem trabalhar no duro para sobreviverem com as suas famílias? Será que a Sr.ª Vereadora ignora que este é que era o modelo do fascismo?
Mas também é incompreensível que se diga que a escola tem de encerrar porque não tem um polivalente (o que é falso, apenas demonstra desconhecimento sobre a realidade de que se fala), e também não tem uma biblioteca. A escola dispõe, de facto, de um espaço polivalente, onde se realizam inúmeras atividades extracurriculares, para além de um espaço exterior de excelência, amplo e acolhedor, onde as crianças que frequentam a escola (e até os adultos) podem brincar e divertir-se sem constrangimentos, e onde são, pude vê-las pessoalmente nas deslocações que fiz à escola, profundamente felizes!
Quanto à inexistência de uma biblioteca na escola – que é um facto –, essa realidade não ilude a existência de muitos, mas muitos livros mesmo, na escola. Falta de livros de qualidade para crescerem livres e fortes, os meninos e meninas que frequentam a Escola da Fonte Santa, certamente, não se queixam!
É também totalmente incompreensível, e deixa muitas dúvidas relativamente à lisura de procedimentos, a tentativa de argumentar que outra razão que justifica o encerramento da escola é um alegado “desinteresse” da comunidade escolar em inscrever os seus filhos naquela escola, argumento sustentado pela Vereadora e pela Presidente pela procura registada no Portal das Matrículas!
Argumento duplamente falacioso: primeiro, quem determina quais as escolas em que as inscrições são feitas através do Portal das Matrículas, é a Câmara Municipal. A mesma Câmara Municipal que decidiu não incluir a Escola da Fonte Santa no rol de escolas disponíveis para inscrição de alunos nesse portal. Fica claro, por isso, que não são os pais e encarregados de educação que optam por não inscrever os seus filhos na Escola da Fonte Santa; é a Câmara Municipal de Almada que não o permite!
Argumento falacioso, também, porquanto a afirmação de que não há procura daquela escola, é cabalmente desmentida pela realidade dos factos, como atesta o preenchimento integral das vagas que a escola pode oferecer, como atrás refiro.
E nem sequer a afirmação, tantas vezes repetida, de que o encerramento daquela escola está previsto na Carta Educativa do Concelho de Almada, recentemente alterada com o voto unânime na Câmara Municipal, e amplamente maioritário na Assembleia Municipal, colhe como bom neste processo desencadeado pela Câmara Municipal de Almada.
Em primeiro lugar, porque a Carta Educativa é um instrumento de planeamento de largo alcance, cuja aprovação ou não aprovação não depende, nem pode depender, de qualquer detalhe específico que contenha, mas das linhas gerais de planeamento que integra. Aprovar um documento deste tipo não significa, e nenhuma leitura nesse sentido é legítima, que se concorda e aceita em absoluto tudo quanto está escrito e é proposto no documento em causa.
Além de que uma Carta Educativa, como qualquer outro instrumento de planeamento, é suscetível de conter apreciações e avaliações incorretas, insuficientes, desadequadas e mesmo erradas, que apenas a prática resultante da sua aplicação e concretização são suscetíveis de revelar, proporcionando a necessária correção. A Carta Educativa não é sagrada nem imutável, e sujeita ao escrutínio permanente sobre a sua adequação, ou falta dela, à realidade concreta, exige uma disponibilidade permanente para avaliação e adequação do rumo seguido, sempre que tal se justifique.
Independentemente de considerações de natureza genérica, importa também atender-se àquilo que a Carta Educativa do Concelho de Almada refere relativamente à Escola Básica do 1º Ciclo com Jardim-de-Infância da Fonte Santa: “Face às debilidades e características estruturais do equipamento e face à procura existente (e potencial), concorrendo para que sejam lecionados diversos anos na mesma sala de aula (situação bastante impactante nas aprendizagens e na qualidade do ensino ministrado), afigura-se relevante proceder ao encerramento da Escola Básica Fonte Santa” (cf. Pgs. 179 do Relatório Fase C).
É isto que é dito na Carta Educativa. Não se caracterizam as debilidades e características estruturais, não se caracteriza a procura existente (muito menos a potencial), nem sequer se diz se o impacto nas aprendizagens relativo ao facto de serem lecionados diversos anos na mesma sala de aula, é positivo ou negativo… mas considera-se “relevante” (?) proceder ao seu encerramento.
Neste emaranhado processo que foi a opção da Câmara Municipal de Almada, a comunidade escolar – professores, pais e encarregados de educação, ex-alunos e trabalhadores da escola – tem assumido uma postura de resistência, ativa e propositiva, traduzida na expressão pública da sua rejeição a esta intenção do Município.
A presença e intervenção em duas sessões a Assembleia Municipal de Almada, a promoção de iniciativas peticionárias que visam a reversão desta absurda decisão do Município – uma delas, uma Petição Pública online, recolheu à data em que escrevo, 1232 assinaturas, e outra, um abaixo-assinado em papel, recolheu na mesma data mais de 900 assinaturas (são perto de 2.200 assinaturas contestando a decisão da Câmara Municipal!) –, atestam a determinação da comunidade escolar da Fonte Santa, que assim expressa não apenas o seu profundo desalento, mas sobretudo o seu veemente desacordo, face ao encerramento de todas as atividades daquela escola, já no próximo ano letivo de 2024/2025.
No passado dia 29 de maio, os pais e encarregados de educação da Escola da Fonte Santa organizaram uma vigília contra o encerramento da escola. Esta ação, que não pode ser desvalorizada, obteve uma participação muito ampla da comunidade escolar e da comunidade local da Fonte Santa, que assim exprimiram o seu profundo desacordo relativamente à decisão da Câmara Municipal.
“A escola é para brincar, não é para fechar”, ou “estamos a lutar para a escola não fechar”, ou ainda a declaração de amor de um dos alunos da escola “a escola não é para fechar, porque eu amo muito esta escola”, foram palavras de ordem que, a par de uma versão adaptada da canção da Liberdade “Grândola, Vila Morena”, as mais de duas dezenas de alunos presentes naquela ação entoaram, e deixaram como mensagem a todos os que entenderam acompanhar aquela ação de protesto e luta.
Presentes naquele momento, representantes de quase todas as forças políticas que têm assento na Assembleia Municipal de Almada, sendo a ausência mais notada a do partido maioritário, o PS. Mesmo o PSD, que na Câmara Municipal votou favoravelmente o encerramento da escola, teve ali um representante, eleito na Assembleia de Freguesia da Caparica e Trafaria. O que acaba por nem sequer soar tão estranho assim, já que aquela Assembleia de Freguesia aprovou por unanimidade (PS incluído!) uma moção em que é rejeitado o encerramento da Escola da Fonte Santa! A Câmara Municipal e a sua maioria isoladas, mesmo considerando que é a sua família política quem governa os destinos da Freguesia da Caparica e Trafaria!
Os bons exemplos, numa área como a educação tão importante para a construção, defesa e proteção de uma sociedade livre, amplamente participada e democrática, nos termos em que a Constituição da República Portuguesa consagra, devem ser preservados, estimulados e acarinhados, de modo a potenciar os seus resultados francamente positivos, promovendo uma formação mais solidária e mais cooperativa, assente na amizade e na entreajuda, e potenciando o desenvolvimento do pensamento a ação crítica e solidária pessoal e coletiva, e de modo a que possam ser replicados noutras realidades, assim beneficiando um cada vez maior número de cidadãos e cidadãs do Concelho de Almada e do País.
Ao mesmo tempo, a escola pública não pode ser olhada, e menos ainda gerida, como se de um mero ativo económico se tratasse, por isso em função de critérios meramente economicistas. A escola pública é um dever constitucional que merece e justifica uma visão avançada e moderna, que privilegie uma avaliação rigorosa dos interesses reais de todos os membros da comunidade escolar em presença, e valorize sobretudo o necessário investimento naquilo que é fundamental e estruturante para a construção de uma sociedade desenvolvida e próspera como se deseja.
A intenção de encerramento da Escola Básica do 1º Ciclo e Jardim-de-Infância da Fonte Santa não corresponde a um desígnio de progresso e desenvolvimento, de melhoria da qualidade do ensino e, por isso, da vida dos cidadãos. Constitui, inversamente, um retrocesso civilizacional assente, provavelmente, numa incompleta e insuficiente avaliação da situação concreta da escola e da comunidade escolar que serve.
Aqui deixo, por isso, um vigoroso apelo a que o bom-senso possa persistir. E que, nesse quadro, seja revertida a decisão de encerrar a Escola da Fonte Santa, e evitada a consequente eliminação de um bom exemplo de organização e funcionamento do ensino em Almada e em Portugal.
Almada Online, CDU, Crónica, João Geraldes, Opinião