Habitação digna e adequada – Um desígnio democrático não cumprido em Portugal e em Almada

Qualquer cidadão, mesmo os bem-intencionados, não poderá deixar de ler nas entrelinhas desta crítica do Primeiro-ministro uma muito mal disfarçada confissão: ao longo destes quarenta anos, em que teve a oportunidade, mas quis desperdiçá-la, o PS nunca assumiu, nem como prioridade nem como preocupação central das suas políticas, o respeito integral pelo artigo 65º da CRP.

Constituição da República Portuguesa

Artigo 65º

Habitação e urbanismo

1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:

a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;

b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;

c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;

d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.

3. O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.

4. O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.

5. É garantida a participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território.


Foi apresentado, há escassas semanas, um “novo pacote” de medidas anunciado como resposta às gravíssimas carências de habitação que subsistem no nosso país, e que impedem, para muitos milhares de famílias portuguesas, o pleno cumprimento do comando constitucional consagrado pelo artigo 65º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Com surpresa, ou talvez nem tanto, o Primeiro-ministro reconheceu explicitamente, durante a operação de marketing político que envolveu aquele anúncio, que os governos que se sucederam desde a aprovação da CRP em 1976, negligenciaram a resolução dos problemas habitacionais do país, chegando ao ponto de criticar, abertamente e veementemente, o facto de não ter sido desenvolvida neste domínio, uma política nacional eficaz e coerente ao longo de mais de quarenta anos.

Esqueceu-se de dizer, ou talvez nem se tenha esquecido, que esses quarenta anos de governos – sempre amarrados a políticas de direita, por natureza avessas à solução de quaisquer problemas do Povo, habitação incluída –, foram exclusivamente partilhados pelo seu próprio partido – o PS – e pelo PSD, em ambos os casos com ou sem o apêndice CDS-PP atrelado, e com vantagem até, em tempo de exercício de funções, para o partido do atual governo de Portugal.

Qualquer cidadão, mesmo os bem-intencionados, não poderá deixar de ler nas entrelinhas desta crítica do Primeiro-ministro uma muito mal disfarçada confissão: ao longo destes quarenta anos, em que teve a oportunidade, mas quis desperdiçá-la, o PS nunca assumiu, nem como prioridade nem como preocupação central das suas políticas, o respeito integral pelo artigo 65º da CRP.

Como na clássica história infantil (mas muito “crescida”) do Pedro e o Lobo, face a tão gigantesca quanto grotesca displicência do passado, será também legítimo a qualquer cidadão, incluindo aqueles bem intencionados, duvidar seriamente do otimismo do Primeiro-ministro nesta sua algo atabalhoada e pouco convicta tentativa de nos dizer que agora é que é, agora é que vai ser: temos uma súbita paixão pela habitação – lembram-se da paixão pela educação? –; temos aí soluções (milagrosas?) à vista…

A situação da habitação vivida por muitos milhares de famílias no País, como em Almada, permanece hoje um problema de enorme dimensão e da maior gravidade, que exige por parte de todos os poderes públicos uma resposta efetiva, eficaz e concreta, capaz de responder de forma positiva aos legítimos anseios das pessoas.

De maior gravidade no que ao arrendamento diz respeito, quando assistimos nos últimos anos a um brutal aumento do valor cobrado pelas rendas, um flagelo particularmente violento que se abate sobre muitos milhares de pessoas que têm sido inexoravelmente expulsas das suas casas e dos seus bairros.

Expulsos pela ação especulativa de um mercado de arrendamento fundado na conhecida lei Cristas, melhor chamada de “lei dos despejos”, que nos chega dos tempos negros das “troicas”, mas que o PS, sem maioria ou com maioria, teima em não mandar para o caixote do lixo, e que é utilizada como verdadeira arma de arremesso na procura do lucro máximo pela especulação e pelos especuladores, e agora também pela sanguinária pressão dos juros cobrados pelos bancos, que ameaçam expulsar ainda mais famílias das suas habitações, neste caso, muito provavelmente, já não para as periferias, mas literalmente para debaixo das pontes.

Da maior gravidade, também, pela gritante carência de oferta de habitação em condições dignas e adequadas – invertendo em 180 graus aquilo que estabelece o número 1 do artigo 65º da CRP –, para tantos jovens (e tantas outras pessoas de todas as gerações!), que necessitam de uma casa para viver, mas esbarram, uma e outra vez, num muro não visível mas praticamente intransponível, erguido pelo tão apregoado “mercado livre”, que existe afinal não para lhes oferecer uma solução digna e adequada à condição de seres humanos que todos somos, mas para estimular e promover a acumulação de lucros milionários, mais do que isso, obscenos, daqueles que utilizam as casas como mercadoria numa lógica de pura especulação.

E a verdade é que o anúncio das mais recentes medidas decididas pelo governo, não nos descansa relativamente à inadiável superação destas realidades e destas dificuldades. 

Pelo contrário, o que percebemos quando lemos as entrelinhas das medidas anunciadas, é que, na continuidade da chamada “Nova Geração de Políticas de Habitação”, lançada em 2018 (Resolução de Conselho de Ministros nº 50-A/2018, de 2 de maio), o que teremos no futuro próximo é a manutenção do velhinho e estafado princípio que determina a entrega de toda a atividade passível de gerar lucro ao capital financeiro especulativo, um princípio que, no domínio da habitação, está na origem direta da expulsão, para periferias cada vez mais distantes, daqueles que têm menor capacidade económica para suportar o brutal aumento das rendas imposto pela especulação imobiliária, uma expulsão “legislativamente” legitimada pelo designado programa de “renda acessível”, a que se associa a transferência para os municípios de responsabilidades que competem constitucionalmente ao Estado Central, através da aplicação dos princípios constantes dessa “nova política de habitação” batizada como “1º Direito”.

Enquanto isto, a Lei de Bases da Habitação, aprovada 45 anos após a Revolução de Abril de 1974 e 43 anos após a promulgação da Constituição da República Portuguesa (2019), uma Lei que consagra muitos dos princípios essenciais para que possa ser finalmente cumprido o desígnio constitucional do direito a uma habitação condigna para todos os portugueses e portuguesas, continua por regulamentar, mas sobretudo continua por cumprir. 

Como afirmou o Deputado Bruno Dias (PCP) na Assembleia da República, na sequência do anúncio destas medidas pelo governo, “o que é preciso mesmo é alterar a lei do arrendamento para defender os inquilinos e conferir estabilidade às suas vidas. O que é preciso é colocar os bancos a pagar os aumentos das taxas de juro e não acumularem lucros aos milhões com as dificuldades das famílias. O que é preciso é um investimento substancial, não em borlas nas leis fiscais, mas de facto em disponibilização de habitação para as pessoas que hoje enfrentam esta carência gritante”. As medidas anunciadas pelo Governo, repito, prenunciam precisamente o oposto.

No fim disto tudo, perguntar-me-ão alguns: mas afinal o que é que esta conversa tem a ver com Almada?

Respondo: tudo! Em Almada, sentimos todos estes problemas de uma forma muito aguda e muito intensa. Em Almada sentimos todos que os problemas de habitação se têm vindo a agravar de forma muito substancial, afetando pela negativa um número crescente de Almadenses (como afeta um número crescente de portugueses em geral).

Em Almada temos uma Estratégia Local de Habitação (ELH), aprovada em 2019 no rasto da já referida “nova geração de políticas de habitação”, revista – e diria eu, aumentada – em 2021. Uma estratégia que, no papel, consagra um importante e significativo conjunto de intenções e de projetos, que pretendem constituir-se como resposta às carências habitacionais dos Almadenses – na revisão de 2021 desta ELH está incluída a previsão de um investimento global de mais de 170 milhões de euros até 2026 (estamos em março de 2023, à porta do ano de 2026, e com eleições autárquicas em 2025!).

Mas na vida real, na vida concreta das pessoas, tardam a surgir sinais inequívocos de que essas intenções e esses projetos alguma vez darão passo maior do que o do papel onde estão descritos e inscritos. 

Pensando que nos confrontamos com uma maioria política em tudo semelhante à que governa Portugal, e tendo presente a confrangedora ausência de sinais evidentes de capacidade de execução daquilo que estrategicamente a ELH de Almada consagra, é com toda a legitimidade que receamos, e receamos com enorme lamento, que em Almada as medidas e propostas apresentadas pelo atual executivo municipal, que localmente afirmam o intuito de resolver os problemas de habitação que afetam milhares de famílias, sigam o mesmo caminho que, infelizmente, parece ser o que fica traçado para as medidas recentemente anunciadas pelo governo para o país: um caminho de fracasso.

João Geraldes

Membro da Assembleia Municipal de Almada, eleito na lista da Coligação Democrática Unitária

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