Não, a senhora presidente não se livrou da herança colonial portuguesa

O processo de descolonização não está concluído enquanto não descolonizarmos as mentes de quem continua a achar que existem cidadãos de primeira e de segunda. O racismo é um problema estrutural no nosso país, está impregnado no sistema em que vivemos e do qual fazemos parte.

Em setembro de 2022, a Câmara Municipal de Almada iniciou um processo devastador de demolição de 65 casas no bairro do 2º Torrão, na Trafaria. Este processo foi executado sem um diálogo próximo com os moradores e sem alternativas de habitação dignas para quem, de repente, ia ficar sem nada. Perante o desespero dos moradores a presidente do executivo municipal continuava a afirmar que todo o processo estava a decorrer segundo o previsto e que os moradores “se encontravam muito melhor agora”. 

No seguimento deste posicionamento prepotente de Inês de Medeiros, uma das associações que trabalha com a população afetada foi a uma reunião de Câmara manifestar o seu desagrado pela forma como as pessoas estavam a ser tratadas. A munícipe afirmou que este processo tinha contornos colonialistas mas não pôde terminar o seu raciocínio porque foi rápida e abruptamente interrompida por uma presidente manifestamente irritada, exigindo que ela retirasse imediatamente as palavras que tinha proferido. Inês de Medeiros afirmou-se ofendida e acrescentou que “não admitia que lhe chamassem colonialista porque já se tinha livrado da sua herança colonial há muito”.

Uma semana antes, a mesma munícipe tinha ido à Assembleia Municipal de Almada proferir as mesmas palavras e dessa vez foi interrompida pelo presidente da mesa da Assembleia Municipal que se disse ofendido e não admitia que alguém lhe chamasse racista. Este caso é ainda mais paradigmático visto que a munícipe se dirigia ao executivo e não à mesa da Assembleia, ou seja, não havia forma possível do presidente se sentir ofendido porque as palavras não lhe tinham sido dirigidas a ele. Ainda assim, ele sentiu necessidade de proteger as pessoas do executivo perante aquilo que ele considerou um ataque.

Importa aqui realçar que a munícipe nunca proferiu estas palavras relativamente a ninguém em específico, falou sempre do processo. Ainda assim as pessoas responsáveis na sala sentiram-se atacadas. 

Aquilo que esta munícipe teria dito, caso a presidente tivesse permitido que ela terminasse o seu discurso, é que se tratava de um executivo branco a demolir casas que alojavam, na sua maioria, pessoas racializadas, sem as ouvir atempadamente, ignorando o seu desespero, ridicularizando as suas reivindicações por habitação digna e tratando-os como cidadãos de segunda. Mas nada disto importa porque quando a palavra “colonial” ou “racista” ecoa numa qualquer sala deste país quem a proferiu é imediatamente silenciado.

Estes episódios relembram-nos como a questão colonial está longe de estar resolvida. O processo de descolonização não está concluído enquanto não descolonizarmos as mentes de quem continua a achar que existem cidadãos de primeira e de segunda. O racismo é um problema estrutural no nosso país, está impregnado no sistema em que vivemos e do qual fazemos parte. Isso significa que não é possível tecermos afirmações como “eu resolvi a minha herança colonial há muito” ou “eu não sou racista” sem o sermos de facto. 

Cada um de nós tem apenas duas opções: ou nos colocamos numa posição de luta contra este flagelo ou se não o fazemos estamos a ser coniventes com ele. De qualquer das formas a posição de vítimas ofendidas não pode nunca servir para não responder pelos nossos atos e comportamentos.

As pessoas que sofrem de preconceito racista devem ter todo o espaço para o denunciar e não serem constantemente silenciadas e ameaçadas quando o fazem como se não tivessem o direito a proferir tais palavras. 

A presidente da Câmara achar que se pode pôr de fora da história só é compreensível por quem conhece o seu sentimento de magnanimidade. A história é algo que carregamos todos, é coletiva, ninguém lhe escapa, nem mesmo Inês de Medeiros. No entanto, acho que este posicionamento da presidente espelha a dificuldade que, como país, temos tido em reconhecer o nosso passado colonial e os impactos presentes que daí advém como o racismo. 

As desculpas dadas, nos últimos anos, por alguns massacres cometidos sobre determinadas populações, nos territórios ocupados são uma gota num oceano ainda manchado de lusotropicalismo e de ideias como a dos “bons colonizadores”. Nem estas ideias são verdade nem conseguiremos nunca fazer o processo de descolonização do pensamento dominante se as continuarmos a perpetuar. E ele urge mais que nunca para permitir que as pessoas racializadas parem de sofrer deste preconceito que as afeta diariamente. A propósito deste assunto, o cantor Luca Argel escreveu um tema chamado “peça desculpas senhor presidente”, recomendo à senhora presidente que o oiça e que pondere fazer o mesmo. 

Inês Pezarat Bom

Deputada Municipal eleita pelo BE na Assembleia Municipal de Almada

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