O PS e a CDU venderam a alma ao diabo
Ideologia, coerência e honra foram atiradas da janela do edifício dos Paços do Concelho.
Quem diria, depois de oito anos a tratarem-se como inimigos figadais, o PS e a CDU acabam de dar as mãos num pacto pós-eleitoral digno de um romance satírico. Sim, leu bem – aqueles mesmos PS e CDU de Almada que desde 2017 trocavam farpas diariamente agora partilham pelouros como se nada tivesse acontecido. É caso para perguntar: quantos tapetes engolidos e quantos sapos comidos cabem num acordo de poder? Pelos vistos, todos.
Em Almada, “vender a alma ao diabo” deixou de ser expressão figurada e passou a manchete política. A CDU aderiu à porca política que tanto criticou desde 2017 – a política do tacho pelo tacho. É que este acordo não serve os Almadenses. Pelo contrário, servirá apenas para contentar os muitos militantes do PCP que integram os pelouros agora atribuídos à CDU, em particular o da higiene urbana (onde o PS nunca convenceu). É também moeda de troca pelo apoio do PS à periclitante CDU na Câmara Municipal do Seixal. É, no fundo, como os próprios assumem nos bastidores, uma negociata que envergonha toda a gente.
Depois de oito anos a atirar pedras um ao outro, PS e CDU aparecem agora de mãos dadas – pedrinhas escondidas nos bolsos, claro. Este é um casamento de conveniência tão súbito, que até as juras de “jamais nos aliaremos” ditas na campanha evaporaram como promessas eleitorais no dia seguinte à contagem dos votos. Quem diria que inimigos figadais trocariam alianças tão rapidamente? Parece uma cena dos Morangos com Açúcar: aqueles dois personagens que se odiavam no início do ano agora são um casal improvável na temporada de verão.
Vamos recapitular o absurdo. Em 2021, quando se falava de eventuais alianças, a então candidata comunista Maria das Dores Meira foi cristalina: “Acho que não faz sentido um acordo com o PS… prefiro fazer com outro partido qualquer”. A frase, dita com desdém, ecoou pelo concelho – a CDU a jurar que jamais se deitaria na mesma cama que os socialistas. Afinal, bastou sair Maria das Dores para que a CDU se deitasse na cama dos socialistas.
Do lado do PS, a confiança não era maior: em 2018, a Dona Inês de Medeiros (PS) acusava a anterior gestão comunista de Almada de tudo menos boa gestão. Exemplos? Um contrato de 200 mil euros/ano para arrendar uma quinta/palacete que nunca chegou a ser utilizada pela Câmara – “um exemplo de má gestão”, denunciava a baronesa Inês de Medeiros. Chegou mesmo a criticar que nunca se fez nada numa “casa” cuja chave nem sequer foi levantada. Era este o tom: de um lado, “má gestão comunista”; do outro, “PS incapaz e arrogante”. Uma guerra de trincheiras verbais desde 2017, com tiros para todos os lados.
Avancemos para a campanha autárquica de 2025. A CDU apresentou-se quase como cruzado moral, prometendo “corrigir o que o PS destruiu” – palavras duras, mas coerentes com os ataques ferozes que fez durante dois mandatos. Garantia que iria reverter privatizações e negócios lesivos para o município, recuperar os bairros degradados e devolver Almada ao rumo certo, em suma, desfazer as “asneiras” socialistas. O folheto comunista praticamente pintava o PS como um furacão neoliberal que varreu Almada e deixou um rasto de lixo (literal e figurado) que só a CDU poderia limpar. Afinal, durante anos a oposição comunista repetiu que Almada estava “abandonada”, imunda e sem rumo por culpa da D. Inês de Medeiros.
Enquanto isso, o PS contrapropagandeava com o passado: lembrava os 41 anos de CDU no poder e casos caricatos de desperdício (olá, palacete!). Escusado será dizer que as palavras foram duríssimas de parte a parte, em resultado de todo um dossiê de acusações mútuas acumulado desde 2017. Se há concelho onde PS e CDU pareciam irreconciliáveis, era Almada – e a memória dos eleitores não é assim tão curta.
Pois bem, corta para novembro de 2025 e assistimos ao momento “beija-mão” no salão nobre. O PS da D. Inês de Medeiros, embora tenha vencido as eleições, ficou sem maioria e decidiu pedir a CDU em casamento. Aquilo que antes seria heresia tornou-se súbita realidade: PS e CDU juntaram as escovas de dentes para desgovernar Almada na mesma cama.
Os comunistas, que durante oito anos estiveram fora do executivo, regressam assim em glória, ocupando “dois lugares a tempo inteiro e um a meio tempo”, com direito a pelouros e até à presidência dos SMAS. Ficarão contentes os militantes da CDU que integram os serviços municipais em causa e também os que vierem a ser contemplados com os habituais tachos no gabinete da vereação. Ou, como diz a CDU, os comunistas passarão a controlar a área da higiene urbana (sobre a qual passaram anos a clamar que estava um caos), a intervenção social e saúde (onde juravam que o PS falhou redondamente) e o movimento associativo (que acusavam os socialistas de desprezar). Tudo isto fica agora nas mãos da CDU – por cortesia do PS. Gerir a água e saneamento? Toma lá, camarada, é tua. E lá vemos os outrora inimigos a sorrir lado a lado na foto, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Lá vão PS e CDU, cantando e rindo, levados pela voz do som tremendo das tubas, um clamor sem fim, que o sonho é lindo – o sonho corporativista da CDU de repartir a porca política com o PS. Afinal, registe-se a pirueta – até 2029 os deputados Amélia Pardal e José Lourenço, da CDU, serão os primeiríssimos defensores do PS Almada e da D. Inês de Medeiros.
A forma como distribuíram os pelouros na Câmara foi digna de festa de amigos: “um para ti, um para mim… e para os outros, nada”. PS e CDU cortaram o bolo autárquico só para eles, deixando os outros a ver navios. A cena faz lembrar aqueles lanches em que dois comparsas dividem os rissóis todos e os restantes convidados ficam só com guardanapos vazios. Transparência e espírito democrático, nem vê-los; mas tachos para os camaradas, isso serviu-se quentinho. Esperemos que, feitas as contas, ninguém devolva os caroços chupados à taça das azeitonas.
Note-se que, em público, ambos os partidos exaltam a “boa-fé” e o “respeito pelas diferenças” no acordo. Mas é difícil não imaginar o diálogo secreto por trás da porta fechada: “Olha, eu finjo que esqueço as tuas trapalhadas se tu esqueceres as minhas, combinado?”. Até ontem chamavam-se de tudo – incompetentes, gastadores, dogmáticos – e hoje trocam elogios fofinhos como se nada fosse. A hipocrisia subiu ao poder junto com eles: perante as câmaras falam em princípios; longe dos microfones, dividem os restos.
Natural? Só se for num universo paralelo, porque na Almada real isto é um volte-face digno de novela mexicana. As mesmas linhas vermelhas que o PS traçara contra acordos à direita não se aplicaram à esquerda soviética pró-Putin – com quem partilha agora o leito matrimonial do poder.
O resultado é uma espécie de geringonça local ainda mais esotérica. Um negócio montado em cima de contradições tremendas, que range e chia a cada movimento. Depois de chamarem tudo um ao outro (incompetentes, danosos, traidores ao povo, escolha à vontade do freguês), PS e CDU governam agora de braço dado. Cinismo? Pragmatismo? Ou apenas sede de poder a qualquer custo? Talvez um cocktail disso tudo, servido no gabinete do baronato.
O mais hilariante – se não fosse trágico – é ouvir as justificações. Dizem que é “pela estabilidade”. Claro, estabilidade… dos seus cargos e dos tachos dos seus amigos. Porque ideologia, coerência e honra foram atiradas da janela do edifício dos Paços do Concelho. Há oito anos estes dois partidos não podiam ver-se nem pintados. A CDU gritava que Almada estava a saque, falava de orçamento “nas gavetas”, alianças PS/PSD às escondidas, e pintava a baronesa Inês de Medeiros como vilã-mor da Margem Sul – que é! O PS, por sua vez, não perdia uma oportunidade de lembrar “a má gestão comunista”, os devaneios de 40 anos de poder absoluto da CDU, e gabava-se de ter “libertado” Almada em 2017.
Agora, subitamente, fazem lua-de-mel política como se nada disto tivesse acontecido – uma lua-de-mel abençoada por tantas juras de amor que bem poderia protagonizar uma qualquer película daquele canal de televisão que usa um coelhinho como marca gráfica. Custava a acreditar, não fosse estarmos a vê-la com os nossos próprios olhos e sem bolinha vermelha.
E os almadenses, onde ficam no meio deste circo? Bom, alguns riem para não chorar. Depois do choque inicial, instala-se um certo cinismo conformado. É normal e compreensível. Já ninguém quer saber destas trocas e baldrocas e destas negociatas que só beneficiam os negociantes. Mas, afinal, depois de oito anos de ataques, críticas e oposição intransigente, PS e CDU decidiram casar-se. O eleitor sente-se enganado? Muitos sentem, com certeza.
A verdade verdadinha, porém, é que o povo de Almada já tinha topado há muito as piruetas dos políticos da sua terra. Durante dois mandatos viram-se alianças improváveis e acusações violentas que invariavelmente acabavam em abraços tórridos, mas interesseiros, quando dava jeito. A política local em Almada entrou oficialmente no domínio do teatro de marionetas. Os partidos fazem de conta que brigam, fazem de conta que fazem as pazes, tudo conforme o guião do momento. No palco, PS e CDU posam como parceiros responsáveis; nos bastidores, o diabo do poder puxa os cordelinhos e dá gargalhadas.
As reuniões do novo executivo têm tudo para virar comédia. Imagine a cena: antigos rivais sentados lado a lado na mesa da Câmara, forçando sorrisos e assentindo às ideias um do outro. Cada sessão parece um sketch: hoje o vereador comunista aplaude a proposta da socialista que ele próprio chamava de absurda no mês passado. Amanhã vice-versa. Os serviços poderão vender pipocas na entrada, porque o espetáculo está garantido. Quem diria que a política local acabaria por fornecer entretenimento – infelizmente, às custas do erário público.
E lembra-se daquele palacete alugado sem chave? Afinal, acabou também por virar símbolo da gestão à moda PS: aluga-se um prédio histórico caro, mas ninguém consegue entrar. Talvez agora, com a CDU na coligação, finalmente arranjem um serralheiro presidencial! Quem carrega um martelo e uma foice há de saber forçar uma fechadura. Se conseguirem abrir as portas do palacete, será que descobrimos lá dentro os princípios que ambos os partidos trancaram do lado de fora?
O título da crónica não exagera: venderam mesmo a alma ao diabo e o diabo entrou na Câmara Municipal. Falta apenas a cerimónia no registo civil – onde, naturalmente, os líderes locais do PS e da CDU darão um vigoroso aperto de mão na frente das câmaras, enquanto escondem a outra mão com os dedos cruzados atrás das costas. Os “noivos”, com uma rosa vermelha e de mão dada, com uma foice e um martelo por trás, trocarão alianças num qualquer auditório – selarão a união com um beijo e os Almadenses assistirão chocados e de queixo caído. Como cereja no topo do bolo, a CDU ficará então com o pelouro da higiene urbana – ou seja, agora será responsável pela limpeza da cidade… e, quem sabe, pela limpeza das evidências das brigas passadas e do que o PS andou a fazer nos últimos 8 anos. Se começarem a varrer, cuidado: pode ser que muito do que foi dito (e feito) nos últimos anos acabe varrido para debaixo do tapete do gabinete presidencial. Pelo menos, lixo por lixo, teremos profissionais no comando: nada como um pouco de limpeza ideológica para juntar à limpeza urbana.
No fim de contas, resta o espetáculo. Um espetáculo de hipérboles tornadas hipócritas, digno do palco do Teatro Municipal se fosse comédia, mas infelizmente é vida real e o Teatro está a cair de podre. A plateia – nós, os almadenses – assiste, já sem grande surpresa. Porque aqui, entre Cacilhas e a Costa da Caparica, já toda a gente percebeu quem são os atores, quem são as marionetas e quem segura os fios. E no fundo, toda a gente sabe também que, neste folhetim local, a alma já estava vendida há muito tempo. Quem pagou o preço – e continuará a pagar – são os de sempre: os munícipes, que vão vendo a cidade ser governada ao sabor das conveniências. Almada merecia melhor elenco, mas pelos vistos este diabo andou a fazer horas extras. Só nos resta a ironia: se não os podemos vencer… pelo menos que possamos rir deste triste teatrinho de poder. E venha o próximo ato.
Almada Online, Crónica, David Cristóvão, Opinião, PSD



