Trafaria | 1º dia de demolições no 2º Torrão
O dia de ontem foi marcado por uma providência cautelar, emoções à flor da pele e retroescavadoras
Ontem, o dia amanheceu no bairro do 2º Torrão, com a notícia de uma providência cautelar entregue por seis famílias na Sexta- Feira, com o objectivo de suspender o desalojamento das suas casas, por não estarem incluídas no processo de realojamento em curso. Vasco Barata é o advogado “pro bono” que está a apoiar os agregados familiares em causa, e em declarações à RTP disse : “Foi feita uma providência cautelar que visa suspender a notificação da Câmara Municipal de Almada (CMA), que dá até ao dia de hoje (dia 30) como limite para as famílias saírem de casa. Estas famílias não estão integradas em nenhum processo de realojamento e não têm neste momento sítio para onde ir, apesar de estarem disponíveis para serem realojadas. Este é um passo inicial que depende de uma acção principal e, nessa acção principal, que depois será interposta no prazo devido, será pedido ao tribunal que condene a Câmara Municipal de Almada pela prática de um acto devido no realojamento. Há no nosso entendimento uma contradição. A CMA notifica as pessoas para saírem das casas devido ao risco da vala ceder, mas não as integra num processo de realojamento como existe com outros casos”. Segundo o mesmo advogado “Estas famílias nunca quiseram acreditar que chegariam até ao dia 30 de Setembro, data limite definida pela autarquia para abandonarem as casas, sem uma solução de realojamento”.
É este o caso de Marta Pereira Ferreira, quer para o desalojamento, quer para a providência cautelar. Mãe solteira de três filhos, Marta não recebe nenhum subsídio do Estado. Trabalhadora, ganha o ordenado mínimo e, na Quinta-Feira deslocou-se à Segurança Social (SS) como indicado pela CMA a todos os agregados não abrangidos pelo plano de realojamento. “A Segurança Social não tem casas e apenas poderia pagar dois meses de renda num apartamento ou um mês e uma caução”, disse ao Almada Online. Mas “como é possível arrendar uma casa para viver de um dia para o outro? Estou muito aflita, porque hoje (Sábado) vão partir a minha casa não sei para onde vou com os meus filhos.” Chorava.
Foi isto que a fez decidir correr o risco e, recusar abandonar a sua casa até ter uma solução habitacional da parte da CMA. Fechou-se em casa alheia às retroscavadoras, Policia Marítima, PSP, GNR, protecção civil, vereadores da CMA, Delegado Municipal e, população do bairro, presente para observar as habitações a serem demolidas. Foi um impasse que durou horas, com um entra e sai da casa de Marta de todos os responsáveis políticos presentes no local, a tentarem desbloquear esta situação. Delegados municipais do BE e do PCP também estiveram presentes a demonstrar a sua solidariedade e a exercer pressão para que este caso se resolvesse pelo melhor. A população do bairro acumulava-se nas imediações da habitação de Marta, queriam ver em primeira mão como este assunto era resolvido. A expectativa era quase palpável.
Francisca Parreira, vereadora da CMA para a protecção civil, acedeu responder às nossas perguntas nesse momento. No dia em que o caso de Marta Pereira se tornou mediático devido à presença da SIC no local, não parou com diligências para encontrar soluções e, dar respostas às várias solicitações dos orgãos de comunicação social presentes, em nome da CMA. Francisca Parreira, foi no Sábado, o rosto que mais reflectia o que se passava no terreno. “A informação que dispomos neste momento é a de que temos 5 agregados a aguardar propostas, mas este é um processo dinâmico”, diz-nos. Ou seja foram identificados mais cinco agregados que não estavam sinalizados no recenseamento feito no processo de realojamento do 2º Torrão e, que apenas foram “descobertos” no Sábado. “Estes agregados são pessoas que não foram sinalizadas pela CMA, por algum motivo, ou porque o processo não chegou, ou porque houve falhas de informação. As equipas multidisciplinares estão no terreno, a identificar todos estes casos concretos para os encaminharem. A segurança social está a fazer atendimento personalizado no local, está neste momento a atender um caso concreto que se enquadra nesta matriz que referi, que é o da Marta. Neste processo, o que aconteceu em concreto, fiz questão de apurar, foi que os documentos e o processo da Marta nunca entraram na Câmara Municipal e, ela não está contemplada neste processo. Está a ser agora analisado e, Segunda-Feira o processo será reavaliado e revisto e, se ela cumprir os requisitos, que estão contemplados no âmbito do programa Porta de Entrada, a Marta será considerada. Não é a primeira adenda que a CMA faz relativamente a este programa de emergência e de acolhimento de pessoas, ainda que seja uma solução provisória”
Relativamente à providência cautelar interposta por 16 agregados do 2º Torrão, declara que a posição oficial da CMA é a de que “a Câmara não se pronuncia enquanto a decisão do Tribunal não for tomada. Accionar o Tribunal com uma providência cautelar é um direito. Esses agregados tomaram essa decisão, aguardamos com serenidade, sabendo que estamos aqui a construir o futuro e a fazer o bem, essa decisão do tribunal. “
Sobre o encaminhamento de agregados para a Segurança Social a vereadora explica que “a CMA procedeu a um levantamento e recenseamento dos moradores que estavam em cima da vala. Desde Maio, constam de uma listagem, e para os que constam dessa listagem começaram a preparar-se soluções de realojamento. Aparecem-nos agora casos concretos, de agregados que não figuram nesta listagem, são estes casos que estão a surgir no terreno, que não estavam em listagem inicial. Chega a um momento em que é necessário ter um censo, ter um critério/medida para começarmos a trabalhar. Estes são novos agregados que por qualquer motivo não estavam quando procedemos ao recenseamento, ou não entregaram documentos, ou cujos documentos não chegaram à Câmara e, estamos a analisar cada caso, para garantir que ninguém fica para trás e que as pessoas terão uma proposta de solução. Cada caso é um caso. “
Francisca Parreira dá-nos também informações repetidas a todos os orgãos de comunicação social. “Como sabe, e a comunicação social sabe disto, a CMA tem em marcha um projecto para construção de 95 fogos habitacionais, que serão direccionados ao 2º Torrão e que irão constituir a habitação definitiva de todos estes casos.” Quando perguntamos qual a localização desses fogos, a resposta é clara “Neste momento não tenho ainda essa informação. Sei que o concurso foi aberto, o projecto de arquitectura está devidamente aprovado, provavelmente o director Filipe Pacheco, que segue este processo com mais proximidade na área da habitação e da habitação social terá informação privilegiada.”
A segurança social só tem apresentado como solução a comparticipação de 1 a 2 meses de renda e não tem habitações para oferecer. Francisca Parreira diz que “é a proposta possível neste momento por parte da segurança social, sendo certo que a Câmara está a acompanhar. Mesmo estes agregados que têm uma solução hoje proposta pela segurança social, para esse tempo, continuarão a ser acompanhados pela Câmara porque podem vir a integrar uma solução provisória de realojamento. Estamos a olhar para estas pessoas. Em boa verdade o trabalho da segurança social com a Câmara é um trabalho complementar, como noutras áreas. Estamos a acompanhar esses agregados e, à segurança social o que compete à segurança social, e ao município o que compete ao município, mas o município continua a acompanhar essas pessoas, não se liberta delas.” Desdramatiza o medo destes agregados, por terem apenas como solução em cima da mesa esta comparticipação limitada por parte da segurança social e, depois serem abandonados por todas as instituições. A vereadora da protecção civil é peremptória: “Estes são momentos de ansiedade, de intranquilidade. O município está presente, desde a primeira hora, com um censo e um levantamento que fez para identificar as pessoas que necessitam de apoio, de realojamento e, de uma solução proposta. A Câmara está a oferecer diferentes soluções, mas oferece soluções. Como foi hoje visível aqui no território está inclusivamente a encaminhar e a resolver soluções que não tinha identificado. Esta é a garantia que ninguém ficará para trás”
Por fim, houve um acordo e, foi oferecido a Marta e aos seus filhos como solução a estadia num hotel na Costa da Caparica, onde irá aguardar até a CMA encontrar uma casa para onde possa ir. A notícia espalhou-se como um rastilho pelo 2º Torrão e, foi visível em todos os rostos um ar de alívio. A palavra foi passada de boca em boca, criando sorrisos por onde passava “Encontraram uma solução para a Marta!”.
O Almada Online voltou a falar com Marta Ferreira depois destas horas de tensão, que colocaram em suspenso o 2º Torrão. Estava a finalizar a embalagem dos seus bens, para abandonar o 2º Torrão. “Estou mais calma porque a técnica da habitação comprometeu-se, com a CMA e a assistente social, a que eu possa ficar num hotel com os custos todos pagos e, vão acelerar o meu processo para me encontrar uma casa no concelho”. Esta era também uma das suas preocupações principais, visto o ano lectivo já ter começado e ter os três filhos em estabelecimentos de ensino no concelho.
“Estou à espera que me venham entregar um documento onde eu assino e eles também e, eu entrego depois no hotel”, continua Marta. “Não sou a única nesta situação. Há várias mães na mesma situação, é muito triste. Estão 16 famílias no estado em que eu estava. Não sei se lhes deram a mesma proposta que me deram a mim. Notei que só aceleraram o meu processo porque me têm visto chorar há dois dias e, porque apareci na televisão. Se não fosse isso, eu não tinha nada, não sabia onde iria dormir com os meus filhos esta noite. Eu estava aflita.”
Marta não sabe ainda como vai trazer os seus filhos para escola que frequentam, localizada perto do 2º Torrão, na Segunda-Feira. “Os transportes na margem Sul estão terríveis. Da Costa para aqui de autocarro é um caos. Talvez tenha de vir de Uber.” O único sorriso que surge na cara extenuada de Marta é quando perguntamos como se sente por ir hoje sair do bairro “Vou sentir muito a falta, é uma família grande, há muita amizade, animação. Vou sentir muito a falta das pessoas que me ajudavam com os meninos na escola quando estava a trabalhar”. Ao seu lado, a madrinha de um dos filhos irrompe em lágrimas.

Jelson Oliveira é outro morador que saiu ontem do bairro e, cuja habitação foi demolida neste primeiro dia em que se cumpriu o calendário para a Zona E (ver mapa). A sua casa estava a seguir à de Marta na ordem de despejo e demolição, por serem habitações com paredes meias. Estava a dormir com a companheira quando lhe bateram à porta e, foi preciso muita insistência para abrirem a saber o que se passava. Enquanto isso, as retroescavadoras e todo o processo de demolição ficou parado de novo. De novo o 2º Torrão suspendeu o fôlego e todas as atenções se viraram para Jelson.
Nada estava ainda empacotado e a sua habitação era claramente a de um “hoarder”, um caos de quem acumula o que traz da rua. Jelson, mais conhecido como “bling bling” no bairro, é uma pessoa complicada para entrevistar, porque embarca em histórias fantasiosas de ser um trabalhador do governo disfarçado, uma espécie de agente secreto. Até mesmo os habitantes do bairro perdem por vezes a paciência com as suas histórias. Nenhuma associação se ocupou dele e da sua companheira, que nos pareceu ser um caso muito parecido com o seu, ao contrário do caso de Marta. Jelson abandonou o bairro com uma declaração igual à de Marta para se apresentar numa unidade hoteleira. Hoje Domingo estava de volta ao bairro. Diz a quem quiser ouvi-lo que o hotel estava cheio e não o recebeu, que dormiu em casa de uma familiar no bairro. Os seus pertences estão à guarda da CMA, embalados em caixas e transportados para um armazém pela empresa Medeiros e Cia contratada pela CMA para o efeito. Esta empresa pela coincidência do nome suscitou algumas piadas nos habitantes do bairro. “Ela não está cá mas mandou a família”, “Mudamos a sua casa é uma frase muito boa, verdadeira”, diziam os habitantes do bairro a rir, enquanto fotografavam a carrinha de mudanças entrar na rua que se encontra por cima da vala.
Avistámos Luis Ferreira de olhos no chão a entrar pela bairro vindo do mar. Perguntamos se conseguiu solução para o seu caso na segurança social. Abana a cabeça sem levantar os olhos. “Fui à Junta como me disseram. As assistentes sociais saíram para almoçar às 12h30, voltaram às 16h30. Não têm nenhuma solução para mim sem ser a comparticipação de um mês de renda, porque mudei a morada do correio na altura em que fui morar com a minha ex mulher em Lisboa. Não querem saber se depois voltei de novo para a minha casa aqui no bairro. Ainda por cima tinha de ser eu a ir procurar casa e aceitarem comparticipar a renda do que encontrasse”. Avistamos as assistentes sociais a atenderem alguém ali perto da praia. “Estás a vê-las? Já saíram, agora estão a atender as pessoas aqui na rua, que falta de profissionalismo”.
Caramó Cassamá aproxima-se, vem sorridente e traz um brilho nos olhos que não lhe tinha visto antes. Chega mais perto do grupo onde estou e diz “Soube que encontraram uma solução para a Marta, será que vão encontrar para a minha também, quando chegarem à minha casa?”
Hoje Domingo, Jelson continua pelo bairro, a perguntar aos amigos se sabem de hotéis baratos em Lisboa, porque precisa de ajuda para encontrar casa.
Entretanto, no bairro do 2º Torrão, prosseguem as demolições das construções que se encontram sobre a vala danificada e em risco de derrocada a qualquer momento. De acordo com o plano, hoje foram demolidas as habitações da zona D.
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