Trafaria | Sebastião Tomás, o último não elegível do 2º Torrão
É a última pessoa, que se tenha conhecimento, ainda não englobada no realojamento da CMA no Bairro do 2º Torrão
Sebastião Tomás tem 58 anos, nasceu no Norte de Angola, em Mutuangulo. “Estou registado como tendo 53 anos, mas tenho 58″, explica-nos. Filho de um Soba (o chefe das aldeias angolanas que faz a ponte entre o Governo e a comunidade), vive e trabalha desde 1992 em Portugal. Em Angola, foi comando no Ministério da Segurança do Estado. Ainda guarda a credencial que o atesta. Mostra-nos .”Eu ao aterrar em território angolano, tenho logo direito a fardar-me”, explica. Na altura era responsável por ir até outras aldeias, aprender o idioma e montar estratégias. Por vezes ia camuflado ou fingia ser louco para recolher as informações necessárias às futuras missões. “Fui criado, educado e treinado sob a bandeira de Portugal. Andei com os portugueses na escola. Sou um comando, vivo de acordo com os mandamentos dos comandos”, afirma orgulhoso. O seu irmão mais velho é actualmente tenente-coronel em Angola e, durante a guerra civil estiveram em lados opostos da barricada: Sebastião lutou pelo MPLA e, o seu irmão pela UNITA. Sempre se respeitaram e mantém-se amigos. Um outro irmão foi sipaio de um pide (nas antigas colónias portuguesas, um local recrutado como membro subalterno das forças policiais ou militares). “Se o meu irmão tenente-coronel soubesse o que se passa comigo agora…não quero que saiba”, confidencia. Percebemos que tem vergonha. Os seus pais foram vítimas desta guerra civil fratricida que teve inicio em 1975, imediatamente a seguir à independência de Angola de Portugal, e terminou apenas em 2002. Quando o MPLA alcançou a vitória em 2002, mais de 500 mil pessoas tinham morrido e, mais de um milhão estavam deslocadas internamente. Não existem números fiáveis sobre quantos ex-colonos voltaram para Portugal, nem de quantos angolanos, fugidos primeiro da guerra colonial e depois da guerra civil, procuraram Portugal ao longo dos anos.

A purga dos anos 90 em Angola, fez com que Sebastião procurasse Portugal em busca de paz e de uma vida melhor. Quando aterrou em Portugal em 1992, lembra-se de ter achado o país “um paraíso na terra”. “Os portugueses deviam erguer as mãos ao céu para agradecer o paraíso que têm”, diz erguendo as suas, a exemplificar. Acrescenta “Tenho 32 anos de Portugal, a amar Portugal, e quero acreditar que o que me está a acontecer será resolvido”. Sebastião tem esperança. Que lhe dêem uma casa para morar, mas também de voltar a trabalhar, voltar a ser útil na sociedade e não depender de ninguém. “ O trabalho é a dignidade do homem. Nunca quis estar parado e ficar dependente das outras pessoas. Ainda penso recuperar-me e voltar ao trabalho. Se andasse mais de bicicleta melhorava mais depressa.”, afirma. “Preciso de estar sossegado e ter concentração. Preciso recuperar fisicamente. Tudo o que se passa não está a ajudar”.
“ O trabalho é a dignidade do homem. Nunca quis estar parado e ficar dependente das outras pessoas. Ainda penso recuperar-me e voltar ao trabalho.”
Sebastião Tomás
Quando fala no trabalho os seus olhos alegram-se. Tem um certificado de manobrador de máquinas industriais, manobrou a toupeira na construçao da linha amarela do metro em Lisboa, da estação do Marquês e do Rato. Trabalhou na A1 na construção da ligação de Sacavém a Vila Franca. Quando não houve trabalho na construção foi estacionador de carros no Hotel D. Carlos. Trabalhou no Algarve, sempre na construção e, conhece todas as cidades algarvias. Enumera-as, uma a uma. Também conhece o Alentejo, também trabalhou por lá. “Ia para onde houvesse trabalho para sustentar a família.”, conclui.
Sebastião Tomás participou no filme “Mupepy Munatim” do realizador Pedro Peralta, mestre em Estudos Cinematogárficos. Esta curta metragem de 18 minutos, que serviu como sua tese de mestrado, foi distinguida com uma Menção Honrosa pela Igreja Católica no 9º IndieLisboa, em 2012. A curta, que pode ser vista aqui, foi também parte integrante da Jornada da Pastoral de Cultura desse ano. «Quando descobre que a mãe morreu, um homem que tinha partido para França em busca de uma vida melhor regressa a Portugal. Seguimos as suas deambulações, os lugares que esqueceu. Sentimos o quão estranho se tornou aos olhos das outras pessoas. Há muito fora, ele não sabia que iria perder tudo e faz o luto à sua maneira», refere a sinopse. Esse homem é Sebastião Tomás, que viveu em França durante algum tempo. Pouco tempo, porque como nos diz “Estive em França e chorava no wc. A comida é má, as pessoas são más. Não gosto da França e voltei a Portugal. Não quero voltar para Angola.”

Tem duas filhas, também moradoras na vala do 2º Torrão, ambas a viverem neste momento no hostel onde se ainda se encontra Marta Ferreira. Foram englobadas no realojamento da responsabilidade da Câmara Municipal de Almada (CMA) que ainda decorre, estando temporariamente num alojamento sobrelotado e sem condições dignas, como noticiámos anteriormente. Um temporário que se arrasta sem prazo de fim à vista. Também tem um filho que voltou para Angola ainda jovem depois de alguns problemas com a polícia. “Podiam tê-lo prendido em vez de o expulsarem do país. Todos os meus filhos nasceram cá, são portugueses”, conta Sebastião.
É com olhos tristes que fala nas filhas. Houve uma desavença por causa da sua viola, a sua companhia onde quer que vá. A sua filha mais velha perdeu uma recém nascida e nunca mais foi a mesma. Deixou de querer ouvir música em casa, não gosta de barulho. “Passou a ser revoltosa, trata-me mal”, nas palavras do pai. Um dia surpreendeu Sebastião a tocar uns acordes ao regressar do trabalho. Discutiram. A viola foi atirada contra uma parede. Sebastião não gostou, achou falta de respeito, pegou nos seus haveres, saiu de casa da filha e nunca mais aí voltou. Era com ela que morava sobre a vala do 2º Torrão. Foi por causa desta desavença que ela não o considerou como parte do agregado, aquando do levantamento camarário, antes das demolições de emergência, provocadas pelo suposto perigo de derrocada da vala de escoamento das águas pluviais. Sebastião dormiu três noites ao relento fora da igreja existente no bairro. “Tinham as cadeiras para a missa cá fora. Coloquei três seguidas e dormi ali no meu saco cama, com um cobertor. De sexta a 2ª. Não tinha dinheiro. Não tinha para onde ir.”
Na Segunda-Feira estava exausto fisicamente, sobretudo devido aos seus problemas de saúde. Já fez duas cirurgias à coluna devido a um acidente de trabalho ocorrido em 2016, do qual ainda não foi indemnizado e cujo processo corre na comarca de Lisboa. Estava na altura a trabalhar na construção da Santa Casa da Misericórdia do Lumiar. Num dia chuvoso, o chefe pediu-lhe para subir a uma grua e ir buscar um comando. Lá em cima escorregou no piso molhado e caiu desamparado cerca de dois metros, em cima da escada existente no meio da grua. “Senti-me um saco ao cair. Fiquei ali inerte encurralado no meio da grua”, recorda. Esteve hospitalizado 1 ano e dois meses. Primeiro no hospital do Barreiro, por viver numa habitação camarária no Lavradio, depois foi transferido para o Hospital do Montijo e, seguidamente para o de Cascais. Neste processo perdeu o direito à casa camarária, por não estar lá a morar e ter deixado de pagar a mensalidade de 200€, porque deixou de receber ordenado. Ainda pediu a uma das filhas que fosse morar para lá, para não perder a habitação que lhe tinha sido atribuída pela Câmara do Barreiro, mas ela não quis ir para tão longe da vida que tinha construído no bairro do 2º Torrão. Quando teve alta em Cascais não tinha casa nem dinheiro. A filha foi buscá-lo e com os parcos rendimentos que tinha alugou-lhe um quarto sobre a vala, que não tinha água, luz ou casa de banho, pago a 200€ mensais. Acabou por mudar para casa da filha mais velha, que tinha um espaço claustrofóbico para todos e onde se veio a dar a desavença. “Quando estávamos na pia batíamos com os joelhos na cama. Para tomar banho molhávamos os lençois. Não consigo estar um dia sem tomar banho, não consigo ir à pia sem tomar banho. Educação militar”, explica.
A acrescer a estas limitações físicas, que o deixaram com cerca de 27,75% de incapacidade, há ainda a diabetes e um problema cardíaco. Andou uns tempos apoiado em duas muletas, agora já consegue equilibrar-se só com uma. “Quando me enervo bloqueio. Fico como os camaleões e posso até cair. Aconteceu quando fui saber do estado do processo da indemnização do meu acidente de trabalho. Fiquei no corredor bloqueado quando me disseram que tinha ido para Loures. A minha sorte foi duas senhoras terem-me ajudado, senão caía”, recorda. Continua a ter um problema de equilíbrio e, quando se enerva de coordenação motora.
Desde que teve alta do Hospital de Cascais e veio morar para o 2º Torrão, que frequenta o Centro de Dia da Santa Casa no 1º Torrão. Almoça lá, varre o pátio e se for preciso anima os utentes mais velhos com a sua viola. Gosta de ajudar e sentir-se útil. “Tenho alteração natural ninguém dança mais que eu. Não preciso de drogas, nunca precisei. Eu animo o centro. Quando começo a dançar esqueço tudo. Não tem mais nada. Dantes cheguei a dançar na Kadoc. Percorria as discotecas todas a dançar.” Exemplifica com uns movimentos de braços de breakdance. Percebemos que os movimentos de dança das pernas estão agora limitados.
Foi para lá que foi naquela Segunda-Feira depois das três noites a dormir ao relento perto da igreja do bairro. Era o primeiro dia dra Isabel, a actual directora, no centro. Pediu para falar com ela e contou-lhe o sucedido. Ela disse-lhe não ter nenhuma solução habitacional para ele, “ainda por cima era o seu primeiro dia”. No final do dia recusou-se a sair do Centro de Dia, queria ficar lá a dormir, na sua cabeça fazia sentido ficar onde o acolhiam todos os dias. Chamaram a GNR. “O polícia que foi lá era muito humano. Explicou que estava a cumprir ordens, que tinha filhos e aquela era a profissão dele. Era assim que os alimentava”, conta Sebastião. Os seus olhos escurecem agora. Acabou por sair e ficou a dormir na rua, perto do centro. Estava muito frio e meteu a cabeça no saco cama, tapou-se com um cobertor “Agora ando sempre com um cobertor comigo. Nunca sei onde vou dormir”. Um cão tentou roubar-lhe o cobertor, defendeu-se. Passou um casal com dois filhos e um dos rapazes disse ao pai que estava algo a mexer no saco cama. O homem mandou-o embora, não queria mendigos ali no seu bairro, no 1º Torrão. Sebastião contou a sua história. O homem exaltou-se, disse que aquilo não podia ser, não era humano, perguntou se ele tinha o telefone de alguém que o fosse buscar, de algum serviço. Sebastião não tinha. De repente, estava sozinho no mundo. O homem chamou vizinhos do 1º Torrão, que chamaram outros vizinhos. “Vieram muitas pessoas, deram-me de comer, uma cadeira e um cobertor. Estava ali em frente ao centro com muita gente à volta e não me deixaram passar mal. Neste momento estou a passar mal”. As lágrimas fazem uma carreirinha e Sebastião baixa o rosto. Rolam redondas como as das crianças. “Tudo o que fizermos aqui na terra é pago aqui. Pessoas da minha familia burlaram-me”, está a soluçar.
Esperamos um pouco. Sebastião recompõe-se. “Não me estou a sentir humano. Eu sempre andei direito. Não aceito que queiram que eu fique por aí pela rua. Sou humano estou desconsiderado. Eu havia de ter um lugar social, eu sou sociável. Sempre fui honesto, sempre trabalhei, nunca roubei, nunca vendi droga”.
Sebastião Tomás
A partir daqui as datas baralham-se um pouco na sua história. Conta-nos que, depois daquele episódio, a Dra. Isabel do centro de dia e a Dra. Lurdes da Junta de Freguesia da Trafaria, o levaram para o lar da Santa Casa da Misericórdia de Costas de Cão e, no dia seguinte, outras pessoas levaram-no para o Centro de Acolhimento nocturno do CIRL no Laranjeiro.
Não sabe precisar quanto tempo lá esteve. Entre Junho e Julho deste ano. Precisamente na altura em que começou o processo de realojamento no bairro do 2º Torrão, apesar de apenas se ter realojado um agregado de Junho a Setembro. No Laranjeiro foi registado na segurança social como sendo um sem abrigo. Foi também ali que teve problemas com um outro utente, um toxicodependente. “Aquele centro não tem condições. Tem uma sanita para 28 pessoas, 2 duches em que se toca nas paredes quando nos lavamos, também para 28 pessoas. As camas nem são beliches, para mim são macas de campanha. Não me conseguia virar durante a noite e andava sempre cheio de dores na coluna. Cheguei a deitar-me no chão entre duas camas para tentar melhorar das dores nas costas.”, os olhos escurecem de novo. Percebemos que esta foi uma má experiência. Não imaginávamos o quanto foi má. O seu vizinho de cama era um toxicodependente, chamemos-lhe P. Davam-se bem. Sebastião chegou a oferecer-lhe um casaco quando P festejou o seu aniversário. Aos Sábados, todos os utentes têm de sair do centro de manhã e não servem almoços, só jantares. Perto da Edp no Laranjeiro, Sebastião cantava e os transeuntes davam-lhe dinheiro. “Cheguei a ganhar 20€ a cantar o Eles comem tudo e não deixam nada do Zeca Afonso.”. Trauteia: “eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada”. Sebastião comprava comida para todos e comiam por ali, sentados numas escadasa. P também.
Um dia P tentou roubar-lhe a viola, mas Sebastião não deixou. “Ele dizia um dia vou-te matar. Eu acabo contigo um dia destes Nhurro.” P tornou-se agressivo do nada. Tentou agredi-lo noutro dia quando estava no duche, mas Sebastião conseguiu libertar-se e assustou-o com uns gestos de karaté. Quando lhe passavam os ataques de fúria P pedia-lhe desculpa. “Não sou rancoroso. Perdoei-o e até lhe ofereci um iogurte quando me veio pedir desculpa”. Noutro dia, Sebastião estava de novo deitado no chão por causa das dores na coluna. P apareceu na camarata e deu-lhe um pontapé na barriga. Teve muitas dores. “É hoje que te mato! É hoje que te mato Nhurro!” gritava P. Sebastião pegou na viola, nos seus pertences e fugiu do centro de acolhimento. Foi sentar-se perto de uma paragem de de táxis. P apareceu e recomeçou a dizer que o ia matar. “Aí mostrei-lhe o que é ser um comando. Dei-lhe uma volta à cabeça e apoiei-a nos meus braços e fui descendo-o devagarinho até lhe pousar a cabeça no chão. Podia ter acabado com ele ali. Felizmente pensei e não o fiz. Disse-lhe para não se meter mais comigo e ele fugiu assustado”, conta Sebastião. “Ele ia matar-me se eu não me viesse embora do centro.”
Voltou para o bairro do 2º Torrão e a frequentar o centro de dia. Passou a dormir numa casa sem tecto, com os seus sacos, a viola, o saco cama e os cobertores. A maior parte dos seus pertences estavam ainda em casa da filha. Ao mesmo tempo, as demolições e o realojamento no bairro seguiam o seu rumo. Sebastião não tinha sido considerado no levantamento das pessoas a realojar e, absorvido com a sua situação pessoal todas as novidades lhe passavam ao lado. Para quem não é do bairro, como os técnicos da CMA, assistentes da Segurança Social, agentes da protecção civil, politicos municipais, que agora apareciam de vez em quando pelo bairro, Sebastião era um sem abrigo que dormia por ali, ou uma pessoa como as outras que viam sair do bairro de manhã e voltar ao final do dia. Continuava a ser meticuloso com a sua higiene no centro de dia, passava lá os dias, por vezes trazia jantar.
Foi no dia 30 de Setembro que telefonaram a Cândida Rodrigues. Sebastião estava na Junta de Freguesia, onde tinham improvisado um gabinete de emergência da Segurança Social para atender os moradores da vala por causa dos realojamentos e demolições no 2º Torrão. Precisavam encontrar um sítio onde Sebastião Tomás dormisse nesse fim-de-semana. Foi Sebastião quem deu o seu contacto. Cândida ficou admirada. Conhecia Sebastião de umas obras que ele lhe tinha feito em casa, há anos atrás. Sabia da desavença com a filha, pois tudo se sabe no bairro. Cândida também mora no 2º Torrão mas não na zona da vala. A sua casa está virada para o Tejo e para a grande duna que entra pelo rio, antes de se chegar ao bairro. Não fosse este um dos bairros mais precários do concelho de Almada, pela vista da sua varanda, diríamos que Cândida era uma reformada desafogada, a gozar a sua reforma numa casa quase na praia. Não fosse isso e os silos de armazenagem de cereaias da Solipor, que cortam a paisagem natural e se impõem pela sua grandeza industrial.
Quando visitou o Torrão com um amigo e viu aquele azul, Cândida decidiu que era ali que queria passar o resto dos seus dias. Gostou da calma, da vista desafogada para o rio Tejo e Lisboa. “Quando encontrei esta casa era um barracão todo dessarumado e sujo. Consegui comprá-lo por 7 mil euros e fiz obras”, conta-nos. São as poupanças de uma vida, para alguém com uma reforma mínima. A casa é pequena, como todas no 2º Torrão. Uma sala com cozinha, um corredor, dois quartos e uma casa de banho. Tudo está arrumado e limpo. O quarto que tem a mais é onde recebia os amigos, que de vez em quando a visitavam. É neste quarto que dorme agora Sebastião e se amontoam os seus sacos de roupa. “Na Segurança Social não encontravam sítio para o Sebastião e telefonaram-me a perguntar se alugava o meu quarto vago. Foi ele quem lhes falou no quarto. Não alugava, não tenho recibos, sou reformada e gosto de morar sozinha”, explica-nos. Ficou sensibilizada com a história de Sebastião e quando lhe perguntaram se mesmo sem alugar o quarto o podia receber durante o fim-de-semana disse que sim. “Disseram-me ser só durante o fim-de-semana. Três noites e que depois encontrariam outra solução para o seu caso. Aceitei.”, continua. Não imaginava na altura o que iria acontecer à sua pacata vida.
Sebastião chegou pouco depois. O espanto de Cândida com toda a situação aumentou, quando passado umas horas chegou uma carrinha da CMA com vários sacos com os seus pertences. “Eram muitos sacos para quem vem apenas passar o fim-de-semana. Encheram o quarto todo!”. Os objectos de Sebastião que se encontravam ainda em casa da sua filha, e na divisão sem tecto onde costumava dormir, foram segundo ele, levados para um armazém da CMA, onde estão móveis das outras casas que foram demolidas e pertences dos seus moradores, até se encontrarem soluções menos provisórias para os habitantes da vala. “Levaram uma mala que tinha cheia de documentos. Têm lá a minha certidão de nascimento e outros documentos importantes”, diz um pouco preocupado com o destino das suas coisas, para ele desconhecido.
Da carrinha saíram os sacos com a sua roupa e, Sebastião não ficou só um fim-de-semana em casa de Cândida mas quase a semana inteira. Cândida, fazia o que as instituições não estavam a fazer, sem qualquer remuneração em troca. Por vezes não sobrava comida do almoço no centro de dia e dava-lhe também jantar, para além da dormida. “Não imagina como a comida que ele traz do centro de dia é má. São coisas fora de prazo, fruta toda tocada, o pão nunca é do dia”, conta-nos. Durante essa semana telefonou várias vezes para a Segurança Social e serviços da CMA para que resolvessem a solução. Sem sucesso. Não havia respostas para o caso de Sebastião. Habituada a viver sozinha, com hábitos e rotinas só suas, a presença de Sebastião começava a incomodá-la. “Ele tem família que não quer saber dele. Eles é que se deviam encarregar-se dele. Eles ou a Segurança Social ou a CMA. Não eu.”, explica enervada. “Molha-me a casa toda quando sai do banho, fala ao telefone até tarde com familia e amigos que tem noutros países, entra com areia nos sapatos e suja-me a casa. Comecei a dormir mal, a andar irritada com a sua presença. Todos lhe prometem ajuda, todos se aproveitaram dele quando podiam, mas agora ningém o ajuda.”, continua.
Sebastião não dormia todos os dias lá em casa. Cândida nunca lhe deu as chaves da casa. Se não estivesse quando ele regressava do centro de dia, ele dormia pelo bairro, pela praia ou pelo cais. Nunca se queixou, sabia que estar naquele quarto algumas noites era um favor. “Se não fosse esta senhora, não sei onde estaria”, admite. No fim da primeira semana, a Dra. Maria José Morgado da Segurança Social telefonou a Sebastião. Tinham encontrado uma solução e iam buscá-lo. Ficaram ambos contentes. Uma carrinha da CMA veio buscar Sebastião, mas os sacos dele ficaram a ocupar o quarto de Cândida. Ambos pensaram que os viriam buscar depois, como tinham feito para os entregar. Nunca vieram.
Sebastião foi levado para um estabelecimento hoteleiro em Setúbal, apenas com a roupa que tinha no corpo. “Fiquei lá quatro noites. O quarto era bom, tinha casa de banho só para mim. Ao fim de dois dias, com as moedas que tinha comprei sabão e uma escova e lavei a roupa. Nao gosto de andar sujo. Nos dois dias seguintes não saí do quarto porque a roupa não estava seca. Comi o que tinha comigo”, descreve. Entrou numa Sexta-Feira e, na Segunda-Feira seguinte a Dra. Maria José telefonou-lhe de novo. “Disse-me que o contrato de arrendamento tinha terminado. Tinha que sair dali no dia seguinte. Voltei de comboio e fui para a Trafaria. Dormi duas noites no banco em frente à Junta de Freguesia.” Na segunda noite conta que a presidente da Junta, Sandra Chaíço, foi levar-lhe o jantar. “Achei-a muito simpática. Ainda tenho os talheres para lhe devolver”, conta Sebastião.
Estamos em finais de Outubro, quase um mês depois da Segurança Social ter pedido a Cândida para que albergasse Sebastião em sua casa durante um fim-de-semana. As rotinas de Sebastião continuam as mesmas: centro de dia, voltar ao bairro no final do dia. Por vezes vai à Junta de Freguesia, conta que já lá preencheu os papéis para uma se candidatar a uma habitação camarária. Também já foi à Segurança Social preencher os papéis para que possa ter um advogado. “Já me tentei matar ali na ponte”, aponta para o pontão de abastecimento dos navios da Nato. “A GNR foi-me buscar. Alguém deve ter visto e deu o alerta”, baixa os olhos de novo.
Cândida tem telefonado vezes sem conta ao longo do mês, quer para a Segurança Social, quer para os serviços da Câmara. Já a conhecem e não precisa de explicar muito o que deseja. Presenciámos um telefonema seu para a Segurança Social em alta voz, em que a resposta da técnica Vanda Ilhéu foi “se a Câmara não lhe dá uma resposta, nós também não a temos. Ponha as coisas dele na rua”. Ficámos boquiabertos. Cândida foi rápida na conclusão depois de desligar o telefone “Esta senhora não devia trabalhar na Segurança Social. Não tem capacidade, não tem sensibilidade.”, tinha as lágrimas nos olhos quando o disse.
Neste momento a única solução que os serviços apresentam a Sebastião é a única que ele recusa: voltar ao centro de acolhimento para sem-abrigos no Laranjeiro. Para todos os serviços envolvidos neste caso é Sebastião quem não aceita as opções que lhe oferecem. É isso que noticiou o Correio da Manhã, na notícia que fez o Almada Online procurar o paradeiro de Sebastão. Encontrámo-lo dia 25 de Outubro. “Porque não me dão um T1? Eu sei cozinhar, sei limpar”, lamenta-se Sebastião a João Cão e Renata Camargo, ambos da Associação Cultural o Canto do Curió, que tem trabalhado no 2º Torrão desde 2016.
Cândida pediu-lhes ajuda, já não sabe a quem mais recorrer. João Cão enviou no dia anterior um mail para a Junta de Freguesia da Trafaria onde pergunta como está o processo de habitação camarária que Sebastião diz ter preenchido, onde estão os seus pertences na CMA, se os sacos que ocupam o quarto de Cândida podem ser agrupados ao restante que têm dele e, se Sebastião lhes pode aceder quando desejar. Pede também uma solução para o problema de Cândida. Para ele a situação é clara. “A Habitação é um direito, não é um favor. Não estamos a pedir um favor para o Sebastião. Ele para nós faz parte da comunidade do 2º Torrão e era habitante no bairro na altura da demolição.”
Cândida anda cada vez mais impaciente. Percebe que neste momento é a única que tem sido humana para Sebastião, mas deseja a sua independência de volta. “Quero uma solução para esta situação e ninguém ma dá. Ninguém resolve nada. Na Câmara dizem-me que não têm pertences do Sebastião aos quais juntar os sacos. Não sabem nada deste assunto dele dormir lá em casa de vez em quando. Quero saber quem se responsabiliza para me pagar as despesas de um mês. Eu não posso ver este senhor aí na rua. É um ser humano que anda a dormir na rua. Os animais são mais bem tratados, acolhem-nos todos. Este homem não tem acolhimento. Alguém vai ter de assumir esta responsabilidade muito grande.”, desabafa. “Hoje por exemplo, está muito frio, vou ter de lhe dar jantar e dormida. Este ser humano não vai dormir ali à beira mar. Terei de lhe dar dormida, não sei é de quem é a responsabilidade. Eu quando disse que sim, que lhe dava fim-de-semana, devia ter dito não. Escusava de andar a sofrer. Ando já a encharcar-me em comprimidos. A minha casa não é nenhum centro de acolhimento. Eu quero que alguém tome providências.” Acha esta situação inadmissível. “Ainda ontem foi-me dito pela dra. Vanda Ilhéu da Segurança Social para por as coisas dele na rua. Estão-lhe a ocupar espaço? Ponha as coisas dele na rua. Acham que ele ou alguém merece isto? Ele não é nenhum prisioneiro. Não é nenhum homem que ande aí na gandaia a roubar. Simplesmente precisa de um prato de sopa de vez em quando e um quartinho para se agasalhar. Quando cá não estou, já lhe dei um cobertor para dormir nas casas que andam a destruir. Este homem fica ali tolhido, num sitio qualquer, não tenho coração para deixar o homem assim, tenho que o acolher de vez em quando. Quero que isto se resolva rapidamente. Quero ver quem me paga estes prejuízos todos. Tenho uma reforma mínima, tenho uma doença rara, e estou aqui com este sofrimento. Agradeço que vejam uma solução para esta pessoa.”
O Almada Online não endereçou nenhumas questões sobre a situação do Sebastião nem à CMA, nem à Segurança Social, nem à Junta de Freguesia da Trafaria. Desde a reunião que teve com os jornalistas que a CMA foi bem clara relativamente ao realojamento no bairro do 2º Torrão: não fulaniza situações, pois cada caso é um caso e, não discute casos pessoais. Assim, vemo-nos impossibilitados de cumprir com o dever do contraditório. Apelamos mais uma vez, ao executivo camarário para que reveja a sua política de comunicação e postura para com os orgãos de comunicação social, pelo bem do dever dos mesmos em informar os cidadãos, pelo direito dos cidadãos no acesso a uma informação livre e o mais correcta possível, pela liberdade de imprensa, pelo dever de resposta dos orgãos representativos dos cidadãos, quando questionados sobre as suas decisões e, em última análise pelo bem da democracia.
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