Almada culturalmente minada
Até hoje acho que ninguém disse melhor que o Chullage: “embora para muita gente este lado não conte, este lado é a fonte”. A Margem Sul é sistemicamente um dos territórios mais esquecidos de Portugal. Pouco mudou e é o movimento hip hop que preserva as memórias das pessoas da periferia.
Cresci a ouvir “Almada – Cidade do Teatro”. Repeti esse mote e ampliei-o, exclamando a minha terra como cidade da dança, da música, de todos os artistas destemidos, com aquela garra natural da margem sul. Esse mote está hoje esvaziado.
Até hoje acho que ninguém disse melhor que o Chullage: “embora para muita gente este lado não conte, este lado é a fonte”. A Margem Sul é sistemicamente um dos territórios mais esquecidos de Portugal. Pouco mudou e é o movimento hip hop que preserva as memórias das pessoas da periferia.
Encontrei uma antiga vizinha há umas semanas. Depois do aperto de bochechas e do “como está a família?” contou-me que sente que Almada está vazia, “morta”. Que costumava ir com o neto a várias atividades culturais todos os fins-de-semana, mas parece que tudo “desapareceu” subitamente. Como a entendo, enquanto artista e enquanto almadense. Não é mero acaso, são decisões políticas. Uns dias depois soube que o Festival MINA foi cancelado. Não é mero acaso, são consequências de uma Câmara que vendeu Almada às elites. E os artistas locais desaparecem.
Antes de dizer o que é – ou era para ser – o festival MINA, tenho de pintar o poder emblemático do hip hop tuga e a sua história com a Margem Sul.
No início dos anos 90 – ali entre o Feijó, onde cresci no andar por cima da minha vizinha, e Corroios – nasceu o rap português. Grupos e MC’s como o Drenazz, os Da Weasel ou os Mundo Escuro rimaram as experiências da violência policial, da carência e da discriminação, com batidas que reproduzem as lutas dos bairros racializados, de imigrantes, de barracas.
Nas recentes celebrações dos 50 anos da cidade de Almada, esta história de pessoas negras, de famílias pobres e de operários foi completamente ignorada. Uma história que se confunde com a da própria cidade.
O Festival MINA é espelho da multiculturalidade de Almada. Um projeto que junta artistas do hip hop, do techno, do punk rock, do jazz, do nu soul e tantos outros rótulos dos nossos imaginários e playlists.
A organização descreve-se como “um conceito que nasce para unir não só músicos, mas artistas das artes plásticas, de dança, do graffiti, da tatuagem e seus demais aficionados” de todo o país. Um verdadeiro espaço artístico independente movido pela paixão da expressão, da inclusão e de comunidade.
O festival foi anunciado para acontecer no início de junho, entre 22 de julho e 17 de setembro, aos fins de semana, em local por determinar.
A 19 de julho uma publicação nas redes sociais do evento explica que o festival foi cancelado e foi a incompetência da Câmara Municipal de Almada que o atirou para o fundo do rio.
O projeto teve início em dezembro de 2022, após um primeiro contacto da organização com a Divisão de Gestão de Espaço Público (DGEP) do município de Almada. Inicialmente pensado para acontecer durante 3 dias do final de maio no jardim do rio, no Ginjal. Essa ideia foi depois inviabilizada.
Foi então sugerido pelo gabinete daquela divisão que a Câmara podia estabelecer um protocolo com a organização do MINA para a cedência de licenças e outros apoios para a sustentabilidade do festival já que a entrada do mesmo era livre.
As hipóteses de local foram diversas vezes discutidas e alteradas, até que em abril sugere-se realizarem o festival no Farol de Cacilhas. A Câmara garante que a execução do plano estava em bom curso, mas que o evento não se poderia realizar em maio como estava previsto, tendo de ser adiado. Notando-se já alguma desarticulação e cansados com as mudanças constantes, a coordenação do MINA pede as datas de 22 de julho a 17 de setembro. Foi-lhes dada luz verde e dito para avançar-se com a contratação de artistas que só “faltava era um ok do superior”.
A 5 dias do início do festival, a organização recebe um email do gabinete da DGEP a dizer que o MINA não ia acontecer: está pensada a concessão daquele espaço para um quiosque, impossibilitando o seu uso para o evento.
A organização tentou arranjar uma alternativa de última hora com a Junta de Freguesia, mas os espaços verdes emitiram um parecer negativo, impossibilitando qualquer solução que permitisse manter o festival nas datas e nos moldes pensados.
Após semanas de preparativos, de articulação, de terem artistas contratados, é a 5 dias do festival que a Câmara Municipal de Almada se lembra de dar uma resposta? É lamentável o desrespeito da Câmara para com a Cultura e este é um exemplo da desconsideração permanente da qual as artes são vítima.
Gostava de dizer que isto foi um caso isolado. Os artistas de Almada sabem bem que não, afinal, estão, infelizmente, habituados a esta insensibilidade da Câmara para com as questões culturais.
Recordo-me das inúmeras peripécias que estressaram o início da minha carreira artística. Recordo-me com especial desgosto os ensaios nas Casas da Juventude cancelados à última da hora por desorganização na gestão dos espaços, algo que até os trabalhadores dos mesmos se queixavam frequentemente, realidade acentuada com a enorme carência de locais para a criação e apresentação de projetos artísticos.
Recordo-me dos projetos independentes e das estruturas emergentes serem sempre colocados em segundo plano porque para o município o que vence são os grandes eventos, nomes pomposos de França e das telenovelas. Enfim, paira na Câmara Municipal de Almada uma certa ideia de provincianismo sobre o que é criado em Almada pela comunidade artística local.
Recordo-me dos apoios municipais insuficientes, realidade que só se tem agravado com um orçamento que cada vez mais fica aquém das necessidade do tecido cultural. Aliás, o normativo do Apoio à Criação Teatral não fomenta o tecido local, prejudicando sobretudo as estruturas artísticas de menor dimensão, esmagando os artistas que tecem ligações com a comunidade e que não têm capacidade de capturar outras fontes de financiamento.
Recordo-me e vejo ainda hoje a política cultural municipal elitista que aprofunda a desigualdade e a desertificação do nosso concelho, aliada à política da especulação e da gentrificação. Não é mero acaso que cada vez mais sentimos que Almada está morta.
Trabalhar no setor da Cultura já não é propriamente fácil no grande esquema da precariedade, do desinvestimento e da falta de ambição política. Mas tem um sabor especialmente amargo quando Almada é governada por uma Presidente de Câmara com currículo nas artes e todas estas adversidades permanecem. Inês de Medeiros abandonou o seu passado e os seus colegas da Cultura, amordaçando as estruturas e os artistas locais com políticas municipais que desempoderam o direito à criação e à fruição cultural.
A cada dia Almada confunde-se mais com qualquer outra cidade europeia, descaraterizada das suas raízes, da sua comunidade e da sua cultura. Uma cidade minada pela gentrificação e pelos barões da high art onde parece não caber um futuro para as artes locais.
A minha solidariedade com a organização do Festival MINA e todos os aristas almadenses renegados pela Câmara Municipal de Almada.
Almada Online, BE, João Carvalho, Opinião