Sara Tavares, um ponto de luz (1978 – 2023)
Cantora pragalense venceu o primeiro Chuva de Estrelas, com apenas 15 anos e, conquistou o Festival RTP da Canção em 1994, com "Chamar a Música"
Sara Tavares faleceu no final da tarde de 19 de Novembro, nos cuidados paliativos do Hospital da Luz, com apenas 45 anos. A sua voz doce mas determinada, calou-se cedo demais. Há mais de uma década que lhe tinha sido diagnosticado um tumor benigno no cérebro.
Sara Alexandra Lima Tavares, nasceu em Lisboa em 1978 e tinha ascendência cabo-verdiana. A cantora tornou-se conhecida do grande público quando venceu o programa da SIC “Chuva de Estrelas” em 1994, com uma interpretação de Whitney Houston. Tinha apenas 15 anos. No mesmo ano, venceu o Festival RTP da Canção com “Chamar a Música”, de Rosa Lobato de Faria e João Oliveira. Na Eurovisão conseguiria alcançar o oitavo lugar com o tema. Ainda em 1994 foi agraciada com a medalha de prata de mérito cultural pelo município de Almada.
Em 1996 estreou-se discograficamente com “Sara Tavares & Shout!”. Cantou em 1999 o tema “Solta-se o Beijo” da Ala dos Namorados. Em 1999 editou o álbum “Mi Ma Bô”, no qual propunha uma sonoridade de fusão afro-pop-soul. O disco foi gravado em França e produzido pelo franco-congolês Lokua Kanza, tendo vendido em Portugal um número de cópias que lhe valeu o galardão de Disco de Ouro.
“Balancê” é o título do terceiro álbum e tornou-se no seu cartão-de-visita internacional, tendo Sara Tavares sido nomeada como Artista Revelação as prémios BBC Radio 3 World Music, em 2007. Em Portugal, as vendas de “Balancê” valeram-lhe um Disco de Platina. Em 2008 editou o DVD “Alive in Lisbon”.
À voz criativa particular e inspiradora, juntou uma consciência social crescente e constante, traduzindo todos estes ingredientes em canções feitas de uma doçura afirmativa, gentil, mas sem espaço para baixar a guarda em temas como a tolerância, o racismo, a liberdade sexual (e todas as outras) e, um sentido comunitário permanente, na hora de fazer da música muito mais do que um conteúdo ou um objecto de consumo.
Em 2009, a artista viu-se obrigada a fazer uma pausa na sua carreira quando foi diagnosticada com um tumor no cérebro. Em 2011, recebeu Prémio de Melhor Voz Feminina nos Cabo Verde Music Awards e, no ano seguinte, deu continuidade à digressão internacional “Xinti”, título do álbum editado em 2009, que lhe valeu o Prémio Carreira do África Festival na Alemanha.
Sara Tavares esteve no programa “Alta Definição” em 2012 e, contou como lidou com o diagnóstico de tumor cerebral. Falou das mudanças que provocou em si e na sua vida e, do ânimo e esperança que recebia das pessoas. “Uns com palavras e outros só com o olhar, tocavam-me no coração e diziam ‘não há-de ser nada’”. Confessou ainda que “houve alturas em que estava mais zangada com o espelho do que com a doença”. Durante a conversa com Daniel Oliveira, contou ainda que a cirurgia foi sem anestesia geral e, que lhe pediram para cantar durante a operação. Foi operada a um tumor cerebral benigno, impossível de retirar na sua totalidade.
Em 2017, lançou o seu quinto e último álbum, “Fitxadu”, “fechado” em crioulo cabo-verdiano. Em 2018 esteve nomeada para os Grammy Latino com esse álbum, no qual aprofundou a relação com a música cabo-verdiana. Ao longo do último ano, Sara Tavares divulgou temas novos, ao fim de cinco anos de silêncio. O mais recente tema, intitulado “Kurtidu”, saiu em Setembro passado.
O problema de saúde que, nos últimos anos de vida, lhe prejudicou a fala e a impediu de tocar guitarra, obrigou-a reinventar-se como artista. “Dispensei a equipa de management e agenciamento e retirei-me. Vivo com muito pouca coisa, sou muito simples. Não saí do Pragal”, explicou a Daniel Oliveira.
“Surge muito esta afasia quando falo, então o meu léxico ficou muito diminuído. Estou com uma recidiva [do tumor no cérebro a que foi operada em 2009] e com as mazelas que tenho há certas coisas na música que não consigo fazer”, revelava numa entrevista concedida ao “Expresso”, no final de 2022. Quando o médico lhe revelou que tinha um tumor benigno, disse-lhe também que havia a possibilidade de ficar muda. Aquele que é, provavelmente, o maior medo de qualquer intérprete.
Porém, ao mesmo tempo que sentiu que vários dos seus planos lhe fugiam, Sara Tavares tentou manter-se racional. “Acreditei muito que não iria ser nada. E a tecnologia da medicina está muito avançada”, declarou a propósito do seu regresso.
Desde que regressou aos palcos, em novembro de 2022, sentia-se com uma energia renovada. Nos últimos 12 meses, lançou mais três canções: “Presensa”, “Mumentu” e “Kurtidu”. Voltou a fazer música com prazer e fugiu das pressões que são impostas pela indústria. Estava numa fase da sua carreira em que não havia mais nada a provar.
Entre tantas dúvidas nesta década demasiado complicada, havia uma certeza. Quando lhe perguntavam sobre “Coisas Bunitas” — como o nome de uma das suas canções, Sara Tavares não hesitava em responder que pensava logo nos seus sobrinhos. Eram eles uma das razões pelas quais ela cantava. Até porque nunca teve filhos.
Uma das suas características mais constante, foi a procura por uma ainda maior ligação a músicas africanas não ocidentalizadas e, explorar a suas raízes e a uni-las a músicas mais contemporâneas, sempre numa busca de fusão. A par da carreira em nome próprio, Sara Tavares colaborou com vários nomes da música nacional e internacional, como a Ala dos Namorados, Dany Silva, Paulo Flores, Buraka Som Sistema, Moullinex, Selma Uamusse, Mariza Lins, Ferro Gaita, Alune Wade, Harold López-Nuss, Capícua, Júlio Pereira, Nelly Furtado, Theo Pas’cal, Filarmónica Gil e, com o também almadense Carlão.
Daily Mail, Mirror, Daily Express, El Confidencial, La Vangardia, Telecinco, El Mundo, Marca e El Periódico são apenas alguns dos jornais internacionais que durante o dia de hoje, 20 de Novembro, destacaram o falecimento e talento da cantora, lembrando ainda a sua nomeação para o Grammy Latino, na categoria de Melhor Álbum de Raiz.
Várias personalidades do mundo da música e do espectáculo manifestaram ontem e hoje as suas homenagens nas redes sociais a Sara Tavares. O Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro ministro António Costa e, o ministro da cultura Pedro Asão e Silva, também manifestaram o seu pesar publicamente.
Hoje em reunião ordinária da Câmara Municipal de Almada, PS, BE e CDU, apresentaram votos de pesar por Sara Tavares e, o vereador Nuno Matias do PSD, expressou o orgulho que os almadenses sentiram aquando das suas vitórias no Chuva de Estrelas e no Festival da Canção, por ser almadense, “uma de nós”. Os votos de pesar foram aprovados por unanimidade e fez-se um minuto de silêncio em sua homenagem.

A vida no Pragal
Sara Tavares era filha de pais cabo verdianos que deixaram Cabo Verde e rumaram a Portugal, terra onde Sara e os seus dois irmãos viriam a nascer. Pouco tempo depois, o pai de Sara deixou Portugal. Era, segundo a cantora, um “homem irrequieto”. Quando já sem pai presente, a mãe da cantora decidiu ir para o Algarve à procura de trabalho, os irmãos acompanharam-na. Para trás ficou Sara, com apenas quatro anos.
A mãe deixou-a com a ama Eugénia, moradora no Pragal, que acabou por se tornar numa avó emprestada, que aceitou acolher e cuidar da jovem. Um gesto que haveria de recordar recorrentemente em público, sempre que falava sobre a infância atribulada. O nome da avó Eugénia era quase sempre presença nas entrevistas a Sara Tavares. Não tinha com ela qualquer laço de sangue, mas sim um laço afectivo que ficou para toda a vida.
“Fiquei cá com a minha avó porque ela estava apaixonada por mim”, recordava Sara em 2012, em entrevista ao “Alta Definição”. “A minha irmã mais nova ainda era muito bebé, precisava estar aos cuidados da mãe. O meu irmão já era grandinho, tinha cinco anos, já fazia as coisas por si e, a minha avó precisava de companheira, era uma senhora idosa. Acabou por se afeiçoar muito a nós e eu acabei por ficar para trás. Não sei muito bem o porquê, mas foi muito harmonioso entre todos.”
A decisão da mãe, que vivia com dificuldades financeiras, foi acolhida com compreensão à época e, anos mais tarde, com Sara já adulta. “Percebi [a decisão]. Acho que os miúdos percebem só com um olhar. Podem depois levar uma vida inteira a traduzir isso para o consciente, mas percebem o olhar da mãe. Sabem que ela vai voltar. Se ela te deixa em algum sítio é porque sabe que vais ficar bem. E se calhar vais ficar mais protegido naquele sítio do que ao ir com ela.”
Ficou então em Almada, onde cresceu sob os cuidados da avó Eugénia, com quem passava os dias a jogar dominó e às cartas, já que não havia qualquer televisão na casa onde moravam. Cresceu também entre famílias brancas, onde o tom de pele de Sara destoava sempre. Mas se em casa, nada disso era um problema, o mesmo não se pode dizer na escola.
“Cresci longe dos africanos. Sentia-me diferente, até porque os miúdos são cruéis com essas coisas. Fazem-te sentir diferente”, contou. O sentimento esbateu-se à medida que crescia. “Achava normal [viver entre pessoas brancas], mas sentia que havia algo. Daquele lado dos bairros, viviam os africanos todos. E eu vivia deste lado (…). Coisas básicas como “não sabes cuidar do teu cabelo?”, perguntavam, e eu dizia: “A minha avó não me sabe pentear”. Não tinha uma mãe ou uma tia que soubesse tratar dele”, contou em 2017, ao “Observador”.
“Comecei a aperceber~me também que as outras pessoas do Pragal não me marginalizavam a mim, mas marginalizavam os outros dos bairros. “Estes pretos vêm para aqui fazer confusão!” Comecei a pensar, comecei a aperceber-me das diferenças. “Mas tu não és, tu és quase branca”, diziam-me.”
A cumplicidade com a avó adoptiva era evidente. “Éramos um duo excelente, uma dupla muito cómica, embora soubesse que eu não era da família. Bastava olhar para o espelho”, recordou. A avó Eugénia não foi a única a cuidar de Sara. “Além dela, tive também uma madrinha portuguesa que vivia na mesma rua. Funcionou um bocadinho como a minha tutora de lar (…) Ensinou-me a ver as horas, ofereceu-me o primeiro relógio. Via sempre se eu estava bem vestida, se estava em condições.”
Apesar de afirmar ter sido sempre muito bem cuidada, recorda episódios da infância em que essa diferença na cor da pele fazia mexer com a sua cabeça. “Havia um senhor da minha rua que era muito cómico, muito meu amigo. Metia-se sempre comigo. E um dia perguntou-me se gostava de cá andar e se já tinha reparado na minha cor. ‘Não gostavas de ter a cor das outras pessoas todas?’, perguntou. Disse que gostava e perguntei o que podia fazer. E ele disse para tomar banho com lixívia.” A jovem foi para casa, agarrou na lixívia e obedeceu. “A minha avó apanhou-me a encher a banheira de lixívia. Claro que o senhor levou um raspanete. Nunca lhe passou pela cabeça que eu o fosse fazer.”
A ascendência cabo-verdiana foi um lado seu que optou por nunca ignorar. Já adulta, voltou ao país de origem dos pais, numa viagem que confessa ter servido para sarar a ferida. “Ter conhecido Cabo Verde nos últimos anos ajudou-me bastante”, revelou em 2012. Voltaria ao tema em 2017. “Fui conhecer os meus avós ao interior da ilha e percebi muita coisa. Percebi a ausência do meu pai. Percebi que a minha avó é igual ao meu pai, em versão mulher. Era a fotocópia dele. Mas também era o inverso do meu pai, era de uma doçura… O meu pai é muito ácido. Ela era o reverso da mesma moeda.”
“E percebi porque é que as famílias cabo-verdianas são tão disfuncionais, que 90 por cento das crianças são educadas pelos tios, pelos avós, porque é um país de emigração. E são os emigrantes que alimentam os que estão lá. Portanto, ajudou-me imenso a fazer as pazes com os meus pais.”
Foi também numa recordação à avó que em 2012 revelou a forma muito própria como encarava o resto da vida — pouco tempo depois da recuperação da cirurgia ao tumor cerebral. “Só tenho saudades de uma pessoa na vida, que é da minha avó. Mas não tenho saudades de mais nenhum momento, nem de mais nada, porque vivi os momentos todos muito intensamente”, explicou. “Sou assim meio-desapegada do mundo. Vivo isto um bocado como se fosse uma passagem.”
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