A paradoxal decadência da Costa da Caparica: desafios e oportunidades (parte 1)

Já lá vai o tempo em que a Costa era bem aproveitada. Nessa altura, quando a Rua dos Pescadores se enchia sempre nos dias de verão e o comércio local dominava, vigorava uma energia de gerações que sabiam valorizar um tesouro natural e humano. Hoje vemos uma cidade parada no tempo e marcada tanto pela degradação urbanística como por problemas sociais, onde apesar de terem sido criadas várias iniciativas, não se maximiza todo o seu potencial micro-económico. O que nos falta para sair deste impasse e devolver-lhe o brilho que outrora teve?

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A Costa da Caparica começou a ser povoada no século XVIII por pescadores oriundos do Algarve e da Beira Litoral, que se fixaram e começaram a desenvolver não só a pesca, como também a agricultura. Na primeira metade do século XX já era uma referência regional relevante de lazer e praia, tendo sido inclusive desenhados projetos urbanísticos (como o de Cassiano Branco) na década de 1930. Estes nunca chegaram a avançar por contrastarem com os valores nacionalistas e autoritários do Estado Novo. 

A sua hegemonia concentrou-se nos anos 70, 80 e 90, bastante motivada pela abertura democrática do 25 de abril e pelo arranque da globalização com a chegada das tendências americanas e internacionais associadas à música, à moda e ao desporto. Foi aqui, mais propriamente na Praça da Liberdade que, em 1974, logo após a revolução, Hugo Pontes abriu aquela que se tornaria a hamburgueria mais antiga do país – o Sandwich Bar. O povoamento tornou-se vila em 1985 e cidade em 2004, porém o que devia ter sido uma jornada de crescimento permanente, ficou pela ideia do que se poderia ter tornado. Restou a degradação urbanística e um local que não maximiza todo o seu potencial micro-económico, enfrentando vários problemas sociais.

Não deixa de ser paradoxal que, apesar do turismo em Portugal ter aumentado de forma extraordinária desde a implantação da democracia (de pouco mais de 3 milhões de hóspedes em 1974 para cerca de 30 milhões em 2023, segundo o Instituto Nacional de Estatística – INE), particularmente nas regiões de foco (Lisboa, Porto e Algarve), a quantidade de serviços e atrações na Costa da Caparica que se verifica atualmente fica muito àquem daquilo que se via nos anos 80, tendo em conta o contexto de desenvolvimento. Vejamos exemplos reais:

-A Rua dos Pescadores enchia-se de multidões felizes nos dias de verão e o comércio e artesanato nacionais perduravam. Hoje ainda se enche ocasionalmente, mas a grande oferta de produtos locais já não se verifica. 

-Existiam diversos bares e discotecas para onde os jovens de Almada iam quando queriam sair à noite. Hoje a esmagadora maioria prefere ir para Lisboa, pois a vida noturna na Costa é pacata.

-Existiam três centros comerciais cheios de lojas, que hoje estão literalmente às moscas; e cinemas vintage que encerraram e cujas salas nem sequer são devidamente aproveitadas.

-O icónico comboio transpraia, um elemento único na linha marítima da margem sul, já não circula.

-Havia um parque aquático que fechou ainda nos anos 90 e um salão de jogos retro que ainda se manteve operacional durante muito tempo, porém acabou por não resistir e hoje o espaço é ocupado por um supermercado. 

Regista-se uma clara decadência temporal que se opõe exatamente à evolução do turismo, das infraestruturas e atrações que se observam a nível nacional, quando comparamos o que vemos hoje com o que se via há 40 anos. 

A Costa é um território privilegiado junto ao oceano, com um ativo natural intangível – a linha de praias ensolaradas e a Arriba Fóssil – que muitas outras localidades, e países, desejariam ter. Temos todos os trunfos para o sucesso, menos três: a estratégia, a proatividade e a tolerância ao risco.

A falta de estratégia reflete-se na ausência de uma perspetiva integrada para o município por parte dos poderes públicos, autárquico e central. Esta perspetiva deveria incluir a inovação dos equipamentos/explorações agrícolas e da pesca, mas principalmente um plano de ação a médio-longo prazo que impulsione o turismo, tirando proveito de gatilhos cruciais, como o facto da procura turística na capital ocorrer durante todo ano, dada a sua natureza cultural e não balnear (o que significa menor incerteza associada à sazonalidade, característica que vem afetando cada vez mais a maioria das regiões portuguesas, nomeadamente o Algarve e certas áreas do interior); a cidade se situar na Área Metropolitana de Lisboa (AML) e já ser uma referência internacional no domínio dos desportos náuticos e radicais, algo já em parte aproveitado com a realização anual do Caparica Primavera Surf Fest.

A fraca proatividade é também responsabilidade do Estado e da Câmara Municipal de Almada refletindo-se, por exemplo, numa gestão ineficiente do património público (como o lixo acumulado nas ruas e a ausência de renovação ou criação de novos espaços de lazer), ou na demora nos processos e excesso de burocracia na aplicação de fundos. Há, porém, uma outra parte responsável, mas silenciosa: a própria iniciativa privada. 

Ao contrário do que acontece em cidades idênticas em determinados aspetos noutros países, como Sunny Beach (Bulgária) e Batumi (Geórgia), a Costa da Caparica, juntamente com a Fonte da Telha, poderiam ser uma estância balnear altamente desenvolvida com uma oferta razoável de hotéis, alojamentos, casinos, discotecas e outros negócios virados para o turismo, que ainda beneficiaria de uma volatilidade sazonal menor do que teria, caso fosse uma vila isolada longe da capital ou tivesse um clima muito mais frio durante metade do ano, como no caso das duas cidades identificadas acima, mas para isso carece de um grupo de investidores e empreendedores com capital ou capacidade de alavancagem nos ramos imobiliário, da hotelaria e da restauração. O investimento, público ou privado, para melhorar os serviços da freguesia ou reformá-la do ponto de vista urbanístico e económico, é escasso dadas as potencialidades que a cidade apresenta, pelo que para mudar é necessário também o terceiro trunfo.

A intolerância ao risco é um fenómeno amplamente estudado na teoria financeira, ligando-se diretamente com a psicologia e justificando o porquê da maioria das pessoas, entre uma solução de investimento que ofereça uma rendibilidade muito baixa mas certa, e outra em que se pode ganhar muito mas também perder, preferem a primeira. Esta característica por si só não é má, faz parte da natureza humana e vários estudos demonstraram que é uma das principais razões por existir algum equilíbrio e eficiência nos mercados de capitais. No nosso caso torna-se um problema, pois limita a viabilidade dos projetos e reduz o leque de opções disponíveis. 

Precisamos de investidores visionários que desenhem um plano de ação sustentado, apresentando os pontos fortes e ameaças, uma projeção realista dos lucros e fluxos de caixa, assim como a capacidade de formar parcerias público-privadas (PPP) e negociar o apoio do Estado.

Encontram-se diversas oportunidades além dos gatilhos identificados, nomeadamente a evolução favorável da procura turística no nosso país e, particularmente no concelho de Almada, que em 2023 apresentou um crescimento percentual do nº de hóspedes em alojamentos turísticos superior a Lisboa e ao agregado nacional. Torna-se necessário acompanhar a procura com um aumento da oferta de alojamentos, que em linha com a crise de habitação, abordada no artigo anterior, tem sofrido graves constrangimentos. 

©Tiago Pereira / Fonte: Pordata

Um outro sinal indireto do potencial da Costa da Caparica são os proveitos económicos de aposento dos alojamentos turísticos1, cujo valor no concelho de Almada é o mais elevado (dados de 2023) entre todos os municípios da margem sul e também acima de alguns outros da AML. Nota-se ainda uma grande exuberância no concelho de Cascais, cujos proveitos chegam perto dos 130 milhões de euros anuais, e possuindo características favoráveis ao turismo balnear acaba por atrair turistas estrangeiros e a população da margem norte que, caso contrário, talvez escolhessem fazer praia na margem sul. 

©Tiago Pereira / Fonte: Anuários estatísticos regionais do INE. Nota: Não se inclui o concelho de Lisboa por este apresentar uma discrepância demasiado elevada em relação aos demais municípios. Assumem-se todos os municípios da Grande Lisboa e da Península de Setúbal como pertencentes à AML.

Para encontrar soluções que coloquem a Costa da Caparica, a Fonte da Telha e todo o concelho de Almada no pódio de referências turísticas nacionais e contribuam para a resolução dos problemas sociais existentes já combatidos há décadas pela autarquia, é necessário analisar as iniciativas que foram tomadas nos últimos anos pelo setor privado, pelos executivos municipais, pela administração central e, particularmente, pelo Instituto do Turismo de Portugal, assim como o porquê de não estarem a ser efetivamente bem-sucedidas. Devemos procurar exemplos de sucesso noutras regiões ou países, como as cidades de Sunny Beach e Batumi, e adaptar os planos de ação às nossas características económicas, sociais e territoriais, mas isso fica para o a parte II desta crónica.

1 Segundo o INE, os proveitos de aposento incluem o valor cobrado pelas dormidas realizadas por todos os hóspedes nos alojamentos e estabelecimentos hoteleiros.

Ir para a 2ª parte ——>

Tiago Pereira

Economista e Mestre em Finanças pelo ISEG-UL

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