A Prancha que veio do Havai

Na segunda tentativa de entrar no mar, a prancha foi à rola, atingiu a areia em velocidade de cruzeiro e terminou a jornada partindo o tornozelo de uma pobre banhista. O incidente selou o seu destino: relegada para uma garagem, a prancha transformou-se numa humilde prateleira.

Nunca saberemos ao certo qual foi a primeira prancha de surf a dropar uma onda na Costa da Caparica, mas há indícios de que terá sido um kit vindo do Havai, trazido pelo Comandante António Jonet, herói de uma epopeia tão insólita quanto a própria prancha.

António Cid Juzarte Lopes Jonet (30 de junho de 1927 – 21 de setembro de 2007) foi um homem de feitos notáveis: atleta olímpico em Helsínquia, em 1952, onde competiu no Pentatlo Moderno, exímio no ténis, esgrima, natação e saltos para a água, e oficial da Marinha. Um verdadeiro renascentista atlético!

Em 1958, durante o regresso de uma volta ao mundo no navio-escola Sagres, António trouxe consigo, como souvenir do Havai, uma prancha de surf em kit: feita de madeira de balsa, oca e – detalhe essencial – sem shop (porque, afinal, a segurança ainda era um conceito por explorar). A prancha chegou à Costa da Caparica, onde António passava férias numa casa da Rua Catarina Eufémia, e, com ela, surgiu o primeiro vislumbre deste objeto exótico na localidade.

Mas, como as boas histórias raramente são lineares, a estreia da prancha foi, no mínimo, catastrófica. Na segunda tentativa de entrar no mar, a prancha foi à rola, atingiu a areia em velocidade de cruzeiro e terminou a jornada partindo o tornozelo de uma pobre banhista. O incidente selou o seu destino: relegada para uma garagem, a prancha transformou-se numa humilde prateleira.

António Cid Juzarte Lopes Jonet

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Décadas mais tarde, em 1973, o destino voltou a brincar com a prancha. Camané Rolim, ao passar férias na casa do Comandante, tropeçou na velha relíquia. Fascinado pelo achado, decidiu levá-la até à Praia da Vitória (atual Praia do CDS) para lhe dar nova glória. No entanto, ao tentar fazer um espumaço, a prancha embicou com o nose na areia e abriu o revestimento… Não resistiu. Partiu-se, para sempre, na sua última aventura.

Diz-se que o Comandante Jonet poderá ter sido o primeiro surfista a aventurar-se nas ondas da Caparica, e que a prancha que deslizou – ou tentou deslizar – na Praia do Sol veio do Havai. Será que foi obra do lendário Tom Blake, pioneiro das pranchas ocas? Nunca o saberemos com certeza. O que sabemos é que deixou memórias, mas não saudades – especialmente à banhista acidentada.

Este objeto icónico encontra-se no acervo do Museu do Surf, aguardando o dia em que será contemplado pelo público, talvez como uma metáfora da relação humana com o mar: audaciosa, mas nem sempre bem-sucedida.

Entretanto, a prancha foi restaurada, envernizada e até ganhou uma nova quilha (a original desapareceu algures na espuma dos dias). A proeza coube a Carlos Heitor, mais conhecido como “Wolf”, um verdadeiro artista de quem falarei numa próxima oportunidade.

Sandra Barros Simões

Formada em artes visuais e produção de espectáculos, dedicada à história da cultura e das artes da Costa da Caparica

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