As primeiras ondas e a constituição do Caparica Surfing Club

Tudo começou no início dos anos 70, quando um grupo de rapazes – João Boavida, Carlos Craveiro, Camané Rolim, Jorge Laruça, Carlos Macário e Nuno Guerreiro – começou a reunir-se entre a casa do Carlos Craveiro, na Rua dos Ílhavos, e, claro, a praia.

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Antes da papelada, antes da solenidade da escritura, o Caparica Surfing Club já existia. Ainda sem nome fixo, mas com a essência bem definida: um grupo de amigos, umas pranchas (ou algo que se parecesse com isso) e uma paixão irremediável pelo mar.

Tudo começou no início dos anos 70, quando um grupo de rapazes – João Boavida, Carlos Craveiro, Camané Rolim, Jorge Laruça, Carlos Macário e Nuno Guerreiro – começou a reunir-se entre a casa do Carlos Craveiro, na Rua dos Ílhavos, e, claro, a praia. O café Triqui Triqui, do Sr. Américo, fazia parte da rotina: uma imperial, um cafezinho e muitas conversas sobre ondas. E, como seria de esperar, as inúmeras festas de garagem, onde se ouviam os Beach Boys e se discutiam os pseudo três metros de onda apanhados na manhã anterior, eram parte essencial da cultura surfista emergente.

Depois da Revolução, a Costa recebeu um novo fôlego com a chegada dos “retornados” das ex-colónias, entre eles alguns que se tornariam peças-chave no surf local. António Pereira Caldas, Paulo Soviético e Nuno Jonet trouxeram uma nova energia, e este último apareceu com um extra: Nick Uricchio, um americano de pinta excêntrica e visual arrebatador, que, na altura, causou um certo alvoroço. Ao mesmo tempo, juntavam-se à tribo figuras como Nuno Taveira (que trouxe o Miguel Katzenstein atrás), Teresa Ayala – a primeira mulher a meter-se nestas andanças –, Rui Alves (conhecido como Índio), Zé Vaz, Pedro Pais, Miguel Cueca, Pedro Bilbao (o puto), Janita, Paulinho da Boss, Miguel Sapinho, Nuno Ravara, Hugo Moura (Pipas) e os irmãos Bruno e Marques da Costa. Em 79, depois de um verão a surfar sozinho em São João da Caparica, apareceu o Zezinho Lafuente. Com eles, ainda em tenra idade, já andava também o Bubas.

Outro ponto de encontro importante foi a casa do António Pereira Caldas, na Avenida D. Sebastião, onde viria a nascer a primeira fábrica de pranchas da Costa (Lipstick). E, um pouco mais tarde, ainda nos anos 70, surgia outro epicentro da cultura surfista: a casa dos irmãos João e José Bruno, cujos pais, muito à frente para a época, permitiam que os filhos explorassem novas aventuras desconhecidas – particularmente o surf. Estes dois miúdos, com a ajuda do pai (arquitecto) e alguma resistência da mãe (que acabava sempre por ceder), chegaram a fazer uma prancha dentro de casa, num quarto ao lado da sala, que era usado como atelier. Imagine-se o pó de poliuretano e fibra de vidro espalhado por todo o lado, misturado com resina… só mesmo uns pais com disponibilidade e entusiasmo para abraçarem esta aventura.

Nos primeiros tempos, todos estes miúdos trocaram a areia e as bolas de Berlim pelas ondas e por qualquer coisa que se parecesse com uma prancha. Como ainda não havia surf shops à mão de semear, improvisava-se: na estância de madeiras e ferragens do Carlos Simões, compravam contraplacado ao Zé Maria Viana e faziam tábuas ao estilo das skimboards. Quando a vontade era maior do que os recursos, os colchões Repimpa serviam para umas carreirinhas nas ondas. As pranchas “a sério” apareciam quase sempre em segunda mão, trazidas pelos “bifes” e outros estrangeiros que passavam pela Costa. Algumas famílias ligadas à aviação e outras, bem viajadas, também ajudaram a introduzir estes objetos pouco vistos por cá.

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Decreto-Lei 94/1980, onde foi publicado a fundação do Caparica Surfing Club.

Alberto Pais, por exemplo, comprava pranchas em lote para revenda. Foi ele quem trouxe a Keo, uma pop-out longboard verde, fabricada em Inglaterra, que foi parar ao teto de Tony Bessone. Ele experimentou-a, torceu o nariz e pendurou-a como peça decorativa. Mas João Boavida, ao vê-la ali a fazer de escultura, não resistiu: levou-a consigo e, a partir daí, passou a ser o agora considerado primeiro surfista local da Caparica.

Como ninguém queria escorregar mais do que o necessário em cima de uma prancha, recorreu-se ao conhecimento dos nadadores-salvadores de São João da Caparica, que, por acaso, eram oriundos da linha do Estoril (João Rocha e Topê) e que deram ao João Boavida uma fórmula artesanal: duas velas de estearina para uma de sebo. Derretia-se tudo junto, deixava-se solidificar numa lata vazia e pronto – tínhamos wax caseiro! Não era a melhor do mundo, mas dava para o gasto, até se começar a aprimorar a mistura.

A ideia de um clube surgiu naturalmente. Afinal, já se partilhavam pranchas, truques e quedas memoráveis – porque não oficializar a coisa? No verão de 1978, a ambição cresceu, e o então chamado Clube de Surf da Costa da Caparica organizou a sua primeira competição interna. O objetivo? Escolher os representantes da Caparica para um campeonato que aconteceria em novembro desse ano, juntando surfistas de São Pedro e Carcavelos. Se hoje há burocracia e patrocínios para tudo, naquele tempo bastavam paixão e alguns telefonemas bem colocados. A Federação Portuguesa de Atividades Subaquáticas, a Junta de Turismo e os Corretores de Seguros João Mata deram o seu apoio.

Mas faltava um detalhe essencial: um nome definitivo e um registo oficial. E assim, a 13 de março de 1980, três intrépidos surfistas – Camané Rolim, Carlos Craveiro e João Boavida – apresentaram-se no cartório da Rua Manuel da Maia, em Lisboa, e assinaram a escritura do Caparica Surfing Club.

Seis meses depois, a 28 de outubro de 1980, realizou-se a primeira Assembleia Geral. Mais do que um acto formal, foi um momento de união. Até os caçadores submarinos, por instantes, largaram os arpões para remar ao lado dos surfistas. Para celebrar, houve um “meeting” na água – um campeonato amigável entre a Costa e São Pedro, onde cada um mostrou o que sabia (ou achava que sabia) fazer nas ondas.

Ao final do dia, uma festa rija na cave do Tavares, com projecção de filmes sobre surf, skate e caça submarina. Não resisto a fazer uma nota sobre o facto de alguns dos presentes estarem mascarados e atrevo-me a deixar, como memorando, a descrição do disfarce do João Boavida: mascarou-se de Depressão Frontal de origem térmica, com um rolo de algodão na cabeça, um borrifador (chuva) numa mão e um leque (vento) na outra. Essa festa terminou numa grande salganhada entre os presentes e os penetras, que foram impedidos de entrar e ultrapassaram todos os limites – os da cordialidade e os do equilíbrio. É o que dá exagerar no álcool e no excesso de contacto físico… E, para bom entendedor, meia palavra basta.

E assim se fez história. Entre pranchas improvisadas, tardes salgadas e festas intermináveis, nasceu o primeiro clube de surf da Costa da Caparica – não por decreto régio, mas por obra e graça de uma juventude que soube transformar a espuma das ondas em matéria de lenda.

Sandra Barros Simões

Formada em artes visuais e produção de espectáculos, dedicada à história da cultura e das artes da Costa da Caparica

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