Professores de educação especial no Monte da Caparica apresentam escusa de responsabilidade

Em causa está a falta de meios e segurança física de alunos com autismo

Os 12 professores de Educação Especial do Agrupamento de Escolas do Monte da Caparica (AEMC), apresentaram um pedido formal de escusa de responsabilidade à direcção do agrupamento. Alegam que a falta de meios materiais e humanos compromete não apenas a qualidade do ensino, mas também a segurança de alunos, docentes e assistentes operacionais.

De acordo com a legislação em vigor, cada sala das unidades de Estudo Estruturado para crianças do espectro do autismo deveria acolher no máximo seis alunos, acompanhados por dois professores e dois assistentes operacionais. No entanto, na unidade do 1º ciclo do agrupamento, na Escola Básica Rogério Ribeiro (EBRR), esse número ascende a 11 alunos com problemáticas graves de autismo.

“Temos vindo a alertar, nos últimos cinco anos, que o número de alunos nessas salas excede o que diz a lei. Agora agrava-se porque temos falta de professores. São crianças integradas em turmas regulares, mas que passam a maior parte do tempo nas unidades de ensino estruturado. São crianças não verbais, com grandes dificuldades de regulação emocional e comportamental”, explica Rui Foles, professor de Educação Especial e um dos signatários do documento.

A sobrecarga das salas dificulta a regulação dos comportamentos das crianças e potencia episódios de violência. Segundo os professores, têm-se verificado casos de crianças marcadas com unhas até sangrar, nódoas negras e mordidas. Além disso, em episódios de agressão, uma professora sofreu a fractura de um dente e uma assistente operacional teve os óculos partidos.

“Como são mais alunos é mais difícil regular comportamentos. São mais alunos por sala, são mais terapeutas a entrar e a sair das salas, mais assistentes operacionais a entrar e sair das salas, mais professores a entrar e a sair das salas. As crianças vêem as suas rotinas alteradas e é mais difícil regular os comportamentos. Além disso, os professores que vêm dar apoio não são os mesmos e as crianças perdem os rostos de referência, o que também dificulta essa regulação. Ao desregularem, podem agredir outros colegas, professores e assistentes operacionais”, acrescenta Rui Foles.

“Estes alunos do espectro do autismo não deviam ser encarados como a grande problemática da escola, porque eles não têm culpa. Têm direito a aprender e têm direito a uma educação verdadeiramente inclusiva”, sublinha Rui Foles.

“Após reunião extraordinária, depois de sucessivas situações de desgaste e de stress extremo face ao quadro de insuficiência de meios e recursos humanos com que têm trabalhado nos últimos tempos e por considerarem que os seus alunos merecem todas as condições consignadas na Lei, nomeadamente as de segurança, no seu quotidiano escolar, [os professores] elaboraram um documento de escusa de responsabilidade face ao quadro geral vivido por todo este grupo de trabalho na unidade deste agrupamento, que não tem fomentado uma verdadeira inclusão”, pode ler-se no documento, que foi entregue na Quarta-Feira à tarde, 5 de Março, à directora do agrupamento Sandra Vicente. O documento foi subscrito por 12 dos 14 professores de Educação Especial, e não foi por todos pois dois docentes estão ausentes por motivo de doença.

Na práctica, quem assinou o documento “continua a fazer o seu trabalho, mas rejeita ser responsabilizado se não conseguir garantir a segurança física dos alunos”, explica o professor Rui Foles.

Sandra Vicente, afirma que já tomou todas as medidas ao seu alcance, mas que o problema persiste devido à falta de recursos. “O cobertor é curto… quando puxamos para tapar a cabeça destapamos os pés e vice-versa. Já contactei a Câmara Municipal, e o Ministério está consciente desta situação.”

O agrupamento recebe crianças referenciadas por hospitais e instituições da região, sendo considerado uma escola de referência para alunos do espectro do autismo. “Além das crianças que vêm para o agrupamento sem diagnóstico e, uma vez cá, constatamos que também têm de ser referenciadas”, sublinha Sandra Vicente. “Se as nossas crianças fossem todas funcionais, o problema talvez nem se colocasse. Mas temos crianças que passam o dia a gritar, que se agridem a si mesmas e agridem os seus pares, professores e assistentes operacionais. A sobrelotação das salas torna-se um problema mais evidente nestes casos”, reforça.

“As unidades têm uma determinada lotação e estão acima da lotação. Algo que não é da competência do agrupamento. Não dá para dividir salas com o mesmo número de professores. Não conseguimos criar mais salas. Estamos com uma taxa de ocupação de 100%. É uma situação grave e que nos preocupa imenso”, reconhece Sandra Vicente.

A falta de condições levou a um aumento do esgotamento entre os docentes. Desde o início do ano lectivo, quatro professores entraram em baixa prolongada, havendo casos de burnout. “Há professores a chorar por já não aguentarem estar na unidade. Com as baixas e ausências, temos dias em que há um professor para 11 alunos”, relata Rui Foles, de 49 anos. O problema afecta sobretudo as unidades de ensino estruturado dos 1º e 2º/3º ciclos e o Centro de Apoio à Aprendizagem.

Os assistentes operacionais também enfrentam dificuldades, preparando um documento de escusa de responsabilidade semelhante. Segundo Foles, “além do apoio às crianças, estes profissionais têm de mudar fraldas, ajudar nas aulas em meio aquático, vestir e despir alunos, dar banho e ainda limpar salas, sem qualquer formação específica para trabalhar com crianças com autismo.”

A Federação Portuguesa do Autismo (FPA) manifestou apoio aos docentes, sublinhando que a situação se repete por todo o país. “O rácio alunos/professor não é respeitado nesta escola, mas também não é em muitas outras”, afirma Eduardo Pizarro, presidente da FPA.

Segundo Pizarro, o decreto-lei 54/2018, que estabelece os princípios da educação inclusiva, ainda não foi plenamente implementado. O documento “veio abrir portas a muitas crianças, no sentido daquilo que defendemos, que todos aprendem e todos têm direito à Educação. Cada indivíduo aprende de forma singular. Sem meios materiais e humanos, não é possível aplicar um decreto que, embora não seja perfeito, é o que temos. Todos os anos recebemos várias queixas de discriminação e falta de apoio”, conclui.

De acordo com o Ministério da Educação Ciência e Inovação (MECI), “a direcção já reuniu com os docentes de modo a, conjuntamente, encontrar as soluções mais adequadas que possam reforçar as respostas a dar aos alunos. Está também em articulação com o município de Almada para que, pese embora o rácio estivesse a ser cumprido, possa substituir as assistentes operacionais ausentes por doença”.

Sofia Quintas

Directora e jornalista do Almada Online

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