Sete, como Septimino
Para uns tudo o que se passou desde o tempo dos fenícios foi obra do PCP e como tal deve ser destruído, para outros é obra do mesmo PCP e trata-se de fazer tudo encaixar nessa narrativa. Diga-se que a primeira tem levado a uma destruição de património e instituições, e a segunda ao apagamento daquilo que não cabe na história oficial do partido.
Para começar o ano não vou trazer nenhum dos problemas mundiais (irá Trump invadir a Gronelândia?), nacionais (quando é que temos um serviço nacional de saúde a funcionar decentemente?), ou mesmo locais (os serviços da Fertagus pioraram com as alterações feitas para melhorar o serviço em Setúbal), mas sim uma memória.
Em Almada a memória tende a ser um campo minado. Para uns tudo o que se passou desde o tempo dos fenícios foi obra do PCP e como tal deve ser destruído, para outros é obra do mesmo PCP e trata-se de fazer tudo encaixar nessa narrativa. Diga-se que a primeira tem levado a uma destruição de património e instituições, e a segunda ao apagamento daquilo que não cabe na história oficial do partido. O 18 de janeiro de 1934, por exemplo, foi um movimento muito mais forte em Almada que na Marinha Grande, mas o que podia fazer parte da memória do concelho tem sido sistematicamente apagado.
Um dos orgulhos almadenses é o ser a “capital do movimento associativo” e das bandas filarmónicas, correndo um pouco o risco de oxidar as páginas douradas, devo dizer que desde o século XIX (e muito no século XX ) se criaram por todo o país inúmeras associações, seguindo, aliás, um movimento europeu.
Não vou concluir que não há nada de especial no associativismo ou na música filarmónica em Almada. Leonel Duarte Ferreira foi uma figura importante enquanto instrumentista, maestro e compositor. Manuel de Jesus da Conceição Jerónimo estudou a sua vida e obra em tese de doutoramento. Do seu trabalho nasceu o que vejo como algo extraordinário no Portugal dos anos 40, o Septimino de saxofones. Sete raparigas entre os 12 e os 15 anos a tocar todo o naipe de saxofones, do soprano ao barítono. Altura de fazer uma declaração de interesse, uma delas, Luísa Avelar era a minha mãe, a maior parte das outras eram familiares ou, pelo menos, próximas.

Na altura, e viviam-se os tempos difíceis da 2ª Guerra Mundial, este grupo foi um sucesso. Apresentou-se, pela 1ª vez em 1941, no contexto da inauguração da nova sede da Academia (hoje o seu edifício antigo). Na altura atuaram também os outros agrupamentos da Academia, a Banda (48 músicos), Orquestra de Saxofones (14 músicos) e o Coro Misto (100 elementos). Eram tempos muito diferentes no associativismo.
Actualmente este grupo seria um sucesso, também o foi na altura. Não se limitaram a tocar na Academia ou no coreto do Jardim do Castelo. Atuaram em várias coletividades da capital e arredores, mas também para a “senhora Carmona” (mulher de Óscar Carmona, então Presidente da República), e na Emissora Nacional. O concerto dado no aniversário do Benfica, em 1945, terá sido o mais relevante.
Em 25 de janeiro de 1945, a Vida Mundial Ilustrada dedica-lhes parte da capa e um saboroso artigo no interior, lá está a fotografia de um dos elementos do grupo (a minha mãe) acima da de Amália Rodrigues. Para o autor do texto, “se fossem americanas e não de Almada, já teriam tanto dinheiro que tocariam em saxofones de ouro”. Também se vivia a época dourada no cinema e o muito significativo título da reportagem é: “Em Almada há 7 artistas que fazem inveja a Hollywood”.
O fim do Septimino é algo misterioso, sempre achei que tinha sido algo semelhante ao descrito por vários participantes em bandas de rock almadenses dos anos 60. Chegou o momento de ir para a tropa (obviamente neste caso não se aplica), o que na altura da Guerra Colonial era muitas vezes o casamento, e essa atividade de adolescentes acaba naturalmente. Haverá aqui algo semelhante, os registos conhecidos vão até 1947, altura em que algumas já tinham passado os 20 anos, estavam na altura de casar. Os casamentos eram, à época muito mais precoces que hoje. Porém pode não ser esta a única explicação. Em 1947 a Academia suspende a Banda, Leonel Duarte Ferreira começa a dirigir outras bandas, e a ter problemas de saúde. Quando a Banda volta, com menos elementos, já não se recuperou o Septimino.
Muitos anos mais tarde, no local em que Leonel Duarte Ferreira nasceu (na Capitão Leitão), criou-se o Museu da Música Filarmónica. O Septimino tinha aí um lugar de destaque. Na investigação que se fez antes da sua criação houve o cuidado de falar com os seus elementos. A inauguração foi, também, uma mini reunião do Septimino, embora algumas já tivessem falecido.
Ninguém continuou este grupo. A geração seguinte foi mais de fazer bandas de rock e estas eram predominantemente masculinas. Ainda assim, algumas mulheres almadenses destacaram-se na música: Ercília Costa, Sara Tavares, Marta E Miranda, Midus Guerreiro. As Bandas Filarmónicas já não são o que eram, lutam para sobreviver e, para compor os naipes, contratam músicos e músicas de fora, mas há muito que não são um território exclusivamente masculino.
Almada Online, história, Nuno Pinheiro, Opinião