A seguir a abril vem maio
Ultimamente tem sido frequente um discurso que vê nos anos de democracia uma destruição de Portugal, seriam 50 anos de corrupção a destruir o lindo jardim à beira-mar plantado por Salazar, mas será mesmo assim? Vamos ver, em especial usando os números, numa tentativa de distanciamento brechtiano.
Como sabem a minha formação é em história e, por isso, vou tentar sair daquilo que é a minha experiência pessoal para ir para números, para as coisas que realmente são importantes na “grande ordem das coisas”. Há indicadores que são aceites como sendo os fundamentais na vida das pessoas, estes são, em primeiro lugar, a própria vida.
Comecemos pelo início da vida, o nascimento e o primeiro ano de vida, a taxa de mortalidade infantil. Nas sociedades tradicionais e pré-industriais essa era muito elevada, em cada quatro nascidos, um não sobrevivia ao primeiro ano de vida. Portugal em 1970 já estava longe desses números, mas em 1970, eram 55 em cada mil as crianças que não sobreviviam ao primeiro ano de vida. Considerando os países da atual União Europeia, Portugal era o pior país. Um salto até 2023, por cada 1000 crianças, são 2,4 (isto é estatística) as que não sobrevivem. Pode-se dizer, isso deve-se aos progressos na alimentação, higiene, medicina. É verdade, mas é um indicador que continua a mostrar a realidade de um país, por isso façamos comparações.
De último, Portugal passou para sétimo entre os 27 países da EU. As notícias dos últimos dias mostram uma evolução negativa preocupante deste indicador. É um sinal de desinvestimento nos serviços públicos, em especial na saúde que, por si só, merecia resolver as eleições de domingo.
Interessante (e outro dos indicadores vitais) é saber quantos anos podem esperar viver as pessoas, com que idade se morre (novamente uma estatística). Aqui só temos dados a partir de 1982 em que essa esperança de vida era de 71,2 anos, o número pode não ser tão impressionante, mas em 40 anos, essa esperança de vida aumentou 10 anos, de 71,2 para 81,2. No contexto dos países da EU também não estamos mal, um honroso 9º lugar.
É verdade que, por exemplo, a qualidade de vida dos idosos cá é fraca, que temos hoje problemas no sistema de saúde, nomeadamente no que diz respeito a partos, mas um “país destruído” que tem estes progressos, não estará nada mal. A que se devem estes progressos? Já vi senhores dos partidos tradicionalmente no poder a gabarem-se deles, porém não vejo as coisas assim, é um trabalho conjunto de todos nós que conseguimos (às vezes exigindo contra a vontade do poder) melhores condições de saúde, higiene, alimentação. É um trabalho só possível em democracia, em que há mais diálogo, mais esclarecimento, mais conhecimento.
Está ausente desta campanha eleitoral, mas falemos da educação. Virá logo à cabeça de muitos a muito elevada taxa de analfabetismo em 1974. Não há forma de o negar, no entanto, desculpando um pouco o Salazarismo, a taxa de analfabetismo era tradicionalmente elevada em Portugal. Até houve um esforço de Salazar para a diminuir, com as famosas escolas do plano dos centenários. Isso parte da compreensão de que, mesmo com o modelo conservador e tradicional de Salazar, era necessário o mínimo de saber ler, escrever e fazer contas. A escola salazarista é também um enorme esforço de doutrinação. Aprendiam-se as sílabas com a palavra Salazar e os meninos das ilustrações vestiam sempre os uniformes da mocidade.
Mas vamos a números. De 1970 para 2021 passou-se de 25% para 3% da população analfabeta, e de 1% para 20% da população com o ensino superior, sendo mais impressionante o número de 37,8% da população entre os 25 e os 34 anos com o ensino superior completo. Vejamos de outra forma, em 1975 a população portuguesa tinha, em média 4,3 anos de escolarização, era metade da média de 8,7 anos dos países da OCDE (alguém falou em cauda da Europa?), em 2015 os anos de escolarização em Portugal tinham mais que duplicado, para 9,5, estávamos mais perto, mas ainda abaixo da média da OCDE que era 12. Não disponho de dados da OCDE para 2021, mas em Portugal o número tinha subido para 10,8. Em 1974/75 havia 4% dos alunos matriculados no ensino secundário e 3% no superior, o que em 2021/2022 passa a 20% e 21%. Podemos dizer que, ao longo destes 50 anos, Portugal tem investido em educação. Não é só o estado, aliás a percentagem do PIB gasta pelo estado em educação atingiu os máximos por volta de 2000 e tem vindo a descer, mas sobretudo as famílias. Diga-se que se atualmente se anda pelos 5% do PIB em gastos públicos com a educação, nos anos finais da ditadura, pouco se passava de 1%.
O tal país que anda a ser destruído há 50 anos tem, afinal, tido um esforço enorme e brilhante para se construir e, sobretudo, construir o seu futuro.
O presente também tem aspetos radiosos. Pelos meus 15 anos havia umas duas raparigas da minha altura em Almada, agora sou capaz de encontrar duas ou três numa turma de 10º ano. Sim crescemos, comemos melhor (da subnutrição até passámos à sobrenutrição e à obesidade), fazemos mais exercício, temos melhor saúde.
Aquele país fechado, tacanho, limitado, orgulhosamente só, acabou, felizmente. Hoje somos um país livre, de cabeça levantada na Europa e no Mundo. Não temos nem presos, nem exilados políticos. A investigação científica cresceu exponencialmente, assim como a produção literária e artística. Quem acredita que são, realmente, 50 anos a destruir o país?
Sabemos todos que não é um mar de rosas. Temos 20% da população em risco de pobreza. É um número que desce muito lentamente e que, curiosamente, está perto na média europeia. É verdade que é muito diferente ser pobre no Luxemburgo ou na Roménia, mas isto é um sinal das limitações deste modelo de sociedade. Lembremos que muito destes pobres são trabalhadores e que sem prestações sociais a situação seria muito pior. Ah, a subsidiodependência de que tanto se fala, são 300 ou 400 milhões por ano de gastos com o RSI, menos do que os lucros de um banco, ou uma grande empresa. Os salários continuam baixos, a juventude mais qualificada sai do país, apesar de grande pompa e números que parecem brilhantes, a economia está quase estagnada.
É inegável que temos muitos incompetentes, chicos-espertos e até corruptos na administração local e central, a corrupção é um problema, mas não é um problema que tenha nascido, nem sequer crescido com o 25 de abril. Portugal de Salazar e Caetano era muito mais corrupto do que é hoje, a ditadura serve exatamente para isso, para manter o poder de um pequeno grupo a quem tudo é permitido. Não há controle, não há uma imprensa livre que possa denunciar situações, o corrupto é protegido pelo poder, porque o próprio poder é corrupto. E era um regime corrupto de alto a baixo, em que tudo se resolvia com uma nota no meio dos documentos, ou com paradas muito mais altas.
No 25 de abril abriu-se um momento em que tudo parecia possível, na verdade, muito foi mesmo possível, quando se fala nos feitos dos descobrimentos, talvez pudéssemos olhar para estes 50 anos, e estes feitos de agora, ao contrário dos de então, mudaram a vida das pessoas. Há muito para fazer, mas o caminho nunca será voltar ao passado.
Almada Online, Crónica, história, Nuno Pinheiro, Opinião