A casa do Jó – O surf report dos anos 80 na Costa da Caparica
Muito antes das webcams, das apps com gráficos coloridos e dos alertas no telemóvel, o surf na Costa vivia-se com outros sensores: os olhos, o faro, o instinto. E havia um ponto de vigia especial: a casa do Jó (Jorge Gato Ribeiro).
No último andar da Torre Atlântico — sim, mesmo por cima da discoteca Strob, em frente ao areal do Bexiga — havia um apartamento que não era só um apartamento. Era base secreta, central de comunicações, farol para surfistas. O surf report da Costa, versão anos 80.
Antes de o sol nascer, já se espreitava da janela. Mar a perder de vista. Olhos em modo radar. A tentar perceber se valia a pena correr para dentro de água antes que o resto da malta chegasse. Falava-se muito da lua cheia. Dizia-se que dois dias antes, e dois dias depois, o mar mexia de forma diferente. Ciência? Lenda? Sabedoria dos pescadores ? Borda d’Água? Pouco importava.
O que interessava era que as marés vivas vinham mesmo — e com elas, as ondas. Boas. Nesses dias, não se perdia tempo. Rumava-se à casa do Jó. Sacos-cama no chão, pranchas encostadas às paredes, olhos no horizonte logo ao nascer do dia. Quando não se dormia lá, havia um plano B: telefone fixo. Ligava-se. Se atendesse o Jó — ou os pais — fazia-se a pergunta mágica: “Como é que está o mar?” E vinha o relatório: “Está glass. Leste. Um metro a subir.”
Era um serviço comunitário, meio caseiro, mas com resultados imediatos! Utilizadores habituais? Tiago Oliveira, Luisinho (Luís Semedo), Bruno Sala, Nuno Pereira, Parreca, os Bessones, Vítor Tubos. E até uns da Ericeira: Miguel Fontes, o Rato… o Paulinho Duarte — filho do Carlos Alberto, encarregado do Transpraia — também fazia parte da crew. Não surfava, mas era o anjo da guarda das manhãs. Levava o grupo na primeira viagem do dia. De borla, claro. Missão: réperage. Ver que praia estava a bombar.
Às vezes bastava ficar logo no Bexiga, no sempre querido Belo Horizonte do Laurentino. O ritual incluía paragem na Xandite — pão fresco para as sandes. Depois, mercado: fruta. Piquenique pronto. E depois? Mar, mar, mar. Até doerem os braços. E o corpo agradecer.
No final dos anos 80, surgiram as primeiras revistas portuguesas de surf: Surf Portugal, Surf Magazine. E com elas, o surf report por telefone. Uma gravação. Parece pré-histórico? Na altura, era alta tecnologia. Havia também outro boletim — que o Jó adorava — o do Anthímio de Azevedo, na RTP. À noite, em silêncio, religiosamente. “Depressão a formar-se ao largo dos Açores…” E os corações a disparar com a previsão. Sonhava-se com séries limpas, offshore, tubos longos. E o dia seguinte.
Hoje temos tudo. Apps, satélites, câmaras HD a mostrar em direto o que se passa no mundo inteiro. Mas nenhuma tecnologia nos devolve o que havia na casa do Jó: O cheiro a maresia às cinco da manhã. O silêncio ansioso de quem sabe que o mar pode estar perfeito. E aquele instante sagrado em que o horizonte dizia que sim. Vai.
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