O que ficou, o que aí vem… ou a chamada Rentrée
A negritude do estado do Mundo mantém-se, talvez o Riso nos consiga estilhaçar trevas…
Enfim, o Outono. “Volta aquela dor antiga. Uma dor que dói sem que se saiba bem onde dói, por isso dói mais. É, talvez, a consciência das coisas, ou só a consciência de que temos consciência que não nos deixa ser simplesmente”, cito manuel silva-terra, in “Calafrio”, Casa do Sul Editora.
Lembro-me do último espectáculo que vi no âmbito do Festival de Almada, a 18 de Julho, “Extra moenia” (Fora de muros), da criadora siciliana Emma Dante. Um colectivo formidável que nos deu “flashes” da dor no Mundo.
Também nas férias um dos livros que li “Ninguém morre nos sonhos”, de Maria Jorgete Teixeira, me foi impressivo. A autora guardou no sótão da memória histórias feitas em cacos, sobretudo no feminino. E as fez soltar na escrita com mestria. Temas como a ousadia, o amor, o preconceito, a violência, a opressão, a própria morte. Lembro um retrato em cima de um piano, onde uma rapariga em traje de gala espera o seu primeiro baile, e, no entanto, o que mais importa não é o que se vê, mas a fuga, o apagamento dela para o outro lado do mundo…
Em todas essas histórias que li, senti que poderiam dar azo a cenas de teatro, mostrando quanto essas personagens estão nas garras do seu destino, e como este é tecido. O reaccionarismo sobrevive muito tempo às situações que lhe dão origem, pois que ainda nos dias de hoje, em certos casos, se vê justificada a luta feminista.
Em bom rigor, confronte-se Alexandre O’ Neill, “Já Cá Não Está Quem Falou”, ed. Maria Antónia Oliveira e Fernando Cabral Martins, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008, pp. 109-110: “O que é urgente é passar-se à ideia outra de que ninguém tem o direito de se afirmar e ocupar, no mundo, o lugar que julga que é o seu — em detrimento seja de quem for.”
Por tudo, não posso deixar de assinalar que entre 19 e 27 de Setembro cinco adolescentes palestinianos do Campo de Refugiados de Jenin trouxeram a Portugal o espectáculo “15, 16, Years Old”, histórias reais de uma infância interrompida pela ocupação militar; um testemunho artístico que transformou o medo, a violência quotidiana, o luto em resistência colectiva, essencialmente, do teatro da palavra e do movimento, com a produção do The Freedom Theatre, sediado em Jenin (Cisjordânia), com encenação de Mahmoud Aita.
A digressão em Portugal – Leiria, no Teatro Miguel Franco; Coimbra, no palco do Teatrão; Porto, no Clube Fenianos Portuenses; Lisboa no Teatro da Barraca – assumiu um significado especial, pois que em Janeiro deste ano o campo de Jenin foi evacuado e ocupado pelo exército israelita. Todos os habitantes, incluindo os intérpretes desta peça, foram forçados a deixar as suas casas e vivem dispersos, privados dos bens e dos territórios onde nasceram. Assim, narram não só a sua história mas de toda uma geração roubada. É a dor colectiva transformada em arte.

Eis que me lembro do longuíssimo poema de Bertolt Brecht “Fala a operários-actores dinamarqueses sobre a arte da observação”:
“Viestes aqui pra representar teatro, mas agora
Ides ser interrogados: Que é que isso quer dizer?
Viestes mostrar-vos diante das pessoas,
As vossas habilidades, viestes pois expor-vos
Como coisas dignas de ver-se…
E as pessoas, esperais vós
Vão dar-vos palmas, arrebatadas por vós
Do seu mundo estreito para a vossa vastidão, como que saboreando
A vertigem das alturas, as paixões na sua
Maior força. E agora perguntam-vos: Que é que isso quer dizer?
É que aqui, nos bancos baixos
Dos que vos viram, levantou-se uma discussão: com firmeza
Exigem uns que vós não mostreis só a vós, mas
O mundo. De que servem, dizem eles,
Que vos dêem sempre de novo a ver como aquele acolá
Sabe estar triste e aquela além cruel, e que rei malvado
Daria aquele lá atrás, que quer dizer este
Constante exibir de caretas e acções
De algumas pessoas que estão nas garras do seu destino?
(…)
Tu, actor, tens de dominar, antes de todas as outras
Artes, a Arte da Observação.
Pois o que é importante não é como tu pareces, mas sim
O que viste e agora mostras. Digno de saber,
É o que tu sabes.
Hão-de observar-te para ver
Até que ponto observaste bem.
Mas conhecimento do homem não alcança
Quem só a si se observa. Por de mais
Se esconde de si mesmo. E ninguém é
Mais esperto do que ele próprio.
Portanto a vossa aprendizagem deve começar
Entre os homens vivos. A vossa primeira escola
Seja a vossa oficina, a vossa casa, o vosso bairro.
Seja a rua, o metropolitano, a loja. Todos os homens ali
Deveis vós observar, estranhos como se fosseis conhecidos, mas
Os conhecidos como se vos fossem estranhos.
(…)
Mas — ouço-vos perguntar — como é que nós,
Espezinhados e perseguidos, explorados e dependentes,
Mantidos na ignorância, vivendo na incerteza,
Havemos de tomar a grande atitude dos investigadores e pioneiros
Que descobrem um país estranho, para o explorarem e o
Subjugarem? Pois nós fomos sempre somente
Objecto do agir de outros, mais felizes. Como
Havemos nós, que fomos sempre só as
Árvores que dão fruto, de ser também os jardineiros? Isso precisamente
Me parece ser a arte que tendes de aprender, vós que sois actores
E operários ao mesmo tempo.
(…)
As dificuldades da Humanidade inteira. E aí podeis vós,
Actores dos operários, aprendendo e ensinando,
Intervir co’a vossa arte em todas as lutas
De homens do vosso tempo e assim,
Com a seriedade do estudo e a alegria do saber,
Ajudar a tornar a experiência da luta em bem comum e
A justiça em paixão.”

Mas também o Riso quantas vezes emerge como descompressão.
É nesse sentido que em Almada veremos no fim de Outubro (e durante um mês) no Teatro Municipal Joaquim Benite (TMJB), numa produção Companhia de Teatro de Almada (CTA), o espectáculo que homenageia a Arte de fazer Rir, com essa comediante maior, de seu nome, Maria Rueff. Sobremaneira nos agrada que “O Elogio do Riso” seja anunciado como uma Ode à Liberdade.
A actriz debruçou-se sobre as origens do riso com o encenador Rodrigo Francisco e também com o encenador/actor Hajo Schüler, da companhia alemã Familie Flöz, bem conhecida do público de Almada.
Ainda no Festival deste ano, Teatro Delusio, uma comédia plena de energia e fascínio, voltou a ser Espectáculo de Honra.
A negritude do estado do Mundo mantém-se, talvez o Riso nos consiga estilhaçar trevas…
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