Quinzena de Dança de Almada – Entrevista a Paloma Muñoz

O Almada Online entrevistou a coreógrafa espanhola que veio à Quinzena de Dança de Almada apresentar o seu espectáculo L.E.V.E

Paloma Muñoz, coreógrafa, bailarina e professora de dança contemporânea espanhola, esteve em Almada para a Quinzena de Dança, onde apresentou o seu mais recente espectáculo L.E.V.E (A Light and Easy Vanishing Event) com a sua Companhia Siberia Danza, no dia 8 de Outubro, no Auditório Osvaldo Azinheira, na Academia Almadense. O Almada Online aproveitou a ocasião para a entrevistar.

Nascida nos anos 80 em Badajoz, Paloma Muñoz praticou ginástica rítmica de alta competição durante a sua infância. Aos 17 anos, foi para Barcelona para se tornar bailarina. Estudou no Institut del Teatre e juntou-se à jovem companhia I.T. Dansa, dirigida por Catherine Allard, onde dançou obras de Jiří Kylián, Ohad Naharín, Stijn Celis, Gustavo Ramirez, Nacho Duato, Uri Ivgi, Wim Vandekeibus, entre muitos outros. Regressou ao Instituto del Teatre para fazer o Curso Superior de Coreografia e, enquanto isso, tornou-se formadora de Gyrotonic®, foi mãe e coreografou algumas peças curtas. Em 2016 iniciou o seu projecto coreográfico e fundou a companhia de dança contemporânea Siberia Danza.

Almada Online: Como é que alguém que practica ginástica desportiva de alta competição se tornou bailarina? Tinha o sonho de ser bailarina?
Paloma Muñoz: Não. Quando era criança, fiz ginástica desportiva até aos 13 anos. Nessa altura comecei a desistir de tudo o que fazia. Estava no ensino secundário e quando chegou o momento de escolher uma carreira, a universidade, eu já estava a sentir algo no meu corpo. Sempre senti algo no corpo, como uma ligação que me permite exprimir melhor o que sinto e, também o gosto por sensações extremas no corpo. De alguma forma, acho que foi como uma intuição. Procurei uma carreira e encontrei em Barcelona uma licenciatura em dança. A minha mãe dizia-me sempre “tens de estudar algo que seja regular”. Ainda coloquei a hipótese de vir estudar para Lisboa, porque sendo de Badajoz é perto. No final escolhi Barcelona. Não sei porquê, mas estava na universidade a estudar Filologia Clássica. Não tem nada a ver com a dança. E de alguma forma, não sei, senti uma ligação muito rápida à dança, porque estudei ballet e contemporâneo e, foi uma sensação extrema no corpo que reconheci muito cedo na dança. E o meu pai dizia, “não faças isso, porque não tem futuro.”

AO: Eras muito jovem, tinhas 17 anos…
PM: Sim, mas na Estremadura, estamos habituados a deixar a casa dos pais muito cedo e, na arte, numa carreira artística, tem de se começar muito cedo.

AO: Como surgiu a Siberia Danza, a tua Companhia? Também era muito jovem em 2016 quando a fundou.
PM: Também foi algo muito intuitivo, porque eu não era uma super intérprete, apenas uma bailarina. Eu adoro criar. Criar coreografias, os meus próprios solos, etc. Além disso, quando era nova, estava sempre a desenhar figurinos. Enquanto fui bailarina, estava a criar as minhas próprias coisas, mas de uma forma muito modesta. Não queria desenvolver uma carreira, mas depois, num determinado momento, deixei de dançar como bailarina e tive o meu filho. Comecei a estudar coreografia como forma de me manter ligada ao que gosto. Mas foi algo que pensei apenas fazer durante algum tempo. Mas depois fiz a minha primeira peça e comecei a ir cada vez mais fundo e a tentar descobrir coisas. Adoro isso, porque quando criamos, tem de se ser capaz de construir um campo onde podemos criar, por exemplo encontrar os lugares que nos apoiam. Isso também dá muito trabalho.

AO: Como foi o processo criativo do L.E.V.E?
PM: Foi um processo muito louco porque, no início, estava num momento em que não queria fazer muitos passos, tinha feito “La Piel Vacía”, a minha primeira peça como coreógrafa, que está cheia passos. É como um bordado, um trabalho de artesanato Por isso queria fazer uma coisa leve. Porque os passos e os oitos que se contam quando se faz uma coreografia são super pesados e, leva-se muito tempo a reconstruir os trabalhos. Queria encontrar uma forma muito leve de trabalhar e comecei a conceber o meu próprio universo de improvisação, com um sistema de metáforas e imagens. No início, comecei assim, mas depois, a pouco e pouco, a coreografia vai aparecendo, porque é preciso criar sítios onde agarrar a coreografia, na improvisação é tudo tão leve que é muito difícil perdermo-nos e depois não se consegue replicar. Também conteceu no meio do confinamento da COVID, por isso foi super difícil. Foi um processo muito estranho porque também tivemos uma residência artística e depois criámos a peça. Estávamos a trabalhar em diferentes áreas da peça, a iluminação por exemplo, depois tivémos algo com o som e, não foi como um processo normal. Por isso, o L.E.V.E também está cheio de saltos, como numa sessão de scroll. Há saltos de todos essas etapas diferentes.

AO: Em que se inspirou?
PM: A primeira inspiração foi: “Quero fazer algo muito divertido, muito leve, porque venho de uma coisa muito forte”. Por isso, pensei: “Quero ser minimalista”. O meu objetivo era o minimalismo, mas no final, apercebi-me que a leveza hoje em dia não tem a ver com isso, está muito cheia de coisas. Além disso, as pessoas que querem ser leves vão para o ioga por exemplo e, isso é uma coisa barroca, cheia de regras e cheia de pormenores. Por isso no final apercebi-me que a leveza não é assim tão leve.

AO: Li uma frase em que dizia que o L.E.V.E era “uma viagem surrealista inspirada no scrolling infinito, no lorazepam e fogo de artifício”…isto é um antagonismo. O que podemos esperar de L.E.V.E?
PM: Temos de nos sentar na cadeira e deixar-nos embalar pelas diferentes camadas. É verdade que a peça fala de semelhanças a partir de três momentos muito diferentes. Um é do ponto de vista do scroll infinito, que tem muitas camadas, mas temos esta superfície [aponta o vidro do telemóvel] que nunca se aprofunda, nunca desce. É como se não se pudesse reter nada, mas também é uma rocha porque está cheia de coisas. Também existe a ideia de filtro, colocamos um filtro para fazer as coisas. Não se vê o mau, vê-se a luz. Depois temos o lorezapam que é um comprimido que se toma quando não se consegue dormir ou quando se está demasiado nervoso. Queres perder a gravidade e flutuar, flutuar, flutuar. Misturámos esta ideia com o ballet blanco. Essa é a principal inspiração. A aspiração à leveza, para um bailarino tem o arabesco que são quatro linhas. Então, brincamos com toda essa psico delicadeza, uma bolha que está fora do chão. E depois a terceira inspiração, o fogo de artifício. É um momento com uma fisicalidade muito forte porque estão no chão. Quando estamos em espaços maiores, corremos. Mas aqui [no Auditório Osvaldo Azinheira] temos uma nova proposta em que estão a aquecer o corpo no chão, vê-se a carne, como se estivessem mesmo a aprofundar. É um contraste, uma energia, sente-se que o está lá em cima na bolha e não é duradouro. A fisicalidade existe vai desde o início da peça. O gesto é como se fosse super desenhado, como se fosse um filtro no início e, no fim definido, como se fosse cru. Os bailarinos no final embatem contra o chão. Portanto, a peça tem estes três momentos diferentes, mas vai de um para o outro, tem um ponto comum ou uma direcção. Apesar de a achar um pouco louca, acho que é a peça mais conceptual que já fiz. É muito louca mas divertida.

AO: O que é a dança para si?
PM: A dança para mim é algo muito desconhecido. Quer dizer, o significado, não sei se será correcto dizer significado, mas o motivo é algo que não sei. É como se fosse algo muito interior. Não sei onde é que ela está, mas também tem a ver com escultura. Tenho prazer em desenhar movimentos com muito cuidado, mesmo que seja improvisação, para encontrar a palavra correcta que activa alguma qualidade no corpo e uma definição. Gosto muito disso, mas não sei porquê. É como se não soubesse que lhe podia chamar expressão, mas é algo que me move sempre. Algo que não sei de onde vem, mas é muito interior. Às vezes penso no meu corpo como um todo. A dança está lá dentro, mas não sei onde. É como um buraco negro, como um vazio. O meu próximo projeto é sobre este vazio, estas grutas e o que está lá dentro.

AO: Actualmente prefere coreografar para outros bailarinos ou dançar?
PM: Eu não quero dançar mais. A minha relação com o meu corpo, uma vez escrevi uma carta ao meu corpo “porque me estás a abandonar?” É difícil, porque eu vou a movimentos muito extremos e, agora tenho 41 anos e magoa-me. É cada vez mais difícil chegar lá, mas o meu desejo é estar lá. Prefiro ter bailarinos, para olhar para eles em vez de olhar para mim. No meu próximo projecto, estou a descobrir que éramos quatro bailarinos numa residência de pesquisa e, eu estava a fazer muita coisa para descobrir o que era específico para este projecto. Porque gosto de incorporar todos os conceitos primeiro e depois desenhar e compreender o que está lá dentro. Porque tenho uma primeira ideia que é cerebral, mas depois é um sentimento que se move. Eu dançava muito com eles para descobrir qual era o sistema, o ambiente, o conjunto de palavras que pertence a este projecto. Por isso, quando crias, também danças muito com os bailarinos com quem crias. E eles dizem-me, como o Jacob, por exemplo diz sempre: “Preciso de te ver para perceber o que é.”

AO: Preocupa-se muito com o envelhecimento do corpo?
PM: Nos meus últimos anos como bailarina, tive uma lesão num pé e foi difícil. Sendo bailarina, é preciso ter sempre cuidado. Eu nunca fui esquiar ou andar a cavalo, porque tinha sempre medo de me lesionar. Sendo bailarina também tens de ir ao ginásio, manter o corpo em forma e com mais idade torna-se também mais difícil.

AO: Como surge a Quinzena de Dança de Almada?
PM: Acho que foi uma casualidade. O Jacob, um dos bailarinos, veio cá alguns anos, através da Plataforma Coreográfica Internacional. Depois foi convidado para coreografar para Companhia e para fazer um solo. Ele manteve o contacto e alguém, acho que a Carlota [produtora da Quinzena de Dança], perguntou-lhe: “O que estás a fazer? Esta peça que eu vi, gostei muito.” Mantivémos o contacto. Para mim foi uma dádiva, porque eu vinha muito aqui durante a minha infância, ia ao Meco, a Setúbal e Arrábida. Só conheço as praias e são muito bonitas. A Lagoa de Albufeira é a minha preferida porque não é tão fria.

AO: Acha que há diferença entre a dança contemporânea em Portugal e em Espanha? Ou acha que é uma linguagem universal?
PM: Eu não tenho muitos conhecimento sobre a dança contemporânea portuguesa, mas acho que agora, com as redes sociais, temos um terreno comum, algo mundial. Acho que somos inspirados por toda a gente e, entre todos nós, a comunidade é densa. Podemos ver os outros mais facilmente e partilhar vídeos. Também acho que actualmente estamos num momento de regresso às raízes e, toda a gente procura ser famoso, mas há um cheiro contemporâneo comum em todo o lado.

AO: Acha que a dança contemporânea está a voltar às raízes?
PM: Acho que sim. É interessante. Por exemplo, aqui vocês têm o Jonas&Lander, com o Bate Fado. Isso é espetacular. Estão a trazer o fado e a misturar.

AO: Acha que, de alguma forma, esse regresso às raízes vai mudar a dança contemporânea, porque o contemporâneo está muito associado ao moderno…
OM: Estou a questinar-me sobre isso neste momento, para o meu próximo projeto. Quando me mudei para Barcelona, fui iluminada pela modernidade, que era muito diferente de Badajoz. Enquanto estiver a desenvolver as minhas coisas, acho que sinto uma ligação com a minha terra. Não é uma nostalgia, mas acho que, de alguma forma, perdi o chão ou não consigo reconhecer que perdi o encanto que tinha, por Barcelona. Ou como o totalitarismo e a patriotismo que se sentem um pouco por todo o lado na Europa e isso faz-me questionar sobre as minhas raízes. De alguma forma sou uma pessoa migrante. Por isso, quando penso na minha origem, vejo um deserto. Perdi algumas das tradições e outras coisas e questiono-me, não é que queira regressar forçosamente, mas é como, o que era aquilo de onde vim? E como é que dialogo com isto, uma vez que a pessoa que sou agora, que estou a viver em Barcelona e que viaja por todo o mundo, não é a mesma pessoa que partiu. Tenho este sentimento, que é o sentimento dos emigrantes. Não se está em casa, mas não se está onde se emigrou, está-se a meio caminho, não se pertence nem a um sítio nem a outro. O que é que foi isso? O que é que ainda resta em mim de quem eu sou?

AO: Qual é o futuro da Siberia Dance? Disse que estava já a fazer outro projecto, outra performance
PM: Sim. Tenho um novo projecto que vai ser estreado a 24 de Outubro do próximo ano. Vou ser artista associada ao Mercat de les Flors em Barcelona. Tenho agora este grande apoio para desenvolver o projeto. Estou muito feliz. Eles apoiam a companhia de dança. É muito bom ter esta ajuda para desenvolver uma peça maior, porque vou ter sete bailarinos. Mas apesar de ter este apoio, o meu objectivo é limpar o palco de tudo. Quero concentrar-me no corpo e em algo muito cru e apenas denso. Então é como se o L.E.V.E. terminasse em cru e, o novo projecto seja como uma continuação. É uma reação. Como se este fosse leveza. E depois passo para o pesado, para o nada, para o vazio. Ao mesmo tempo estou a coreografar para o Ballet Bern na Suíça. Adoro Berna, é tão linda como cidade. Estou apaixonada porque em 2022 ganhei um concurso na plataforma de dança de Berna. Convidaram-me na época passada para fazer uma peça curta. E este ano vou coreografar uma peça sobre a Virginia Wolf. Estou a ter alguns projectos como coreógrafa convidada na Europa. Estou a combinar estes trabalhos com o da Siberia Danza. Simplesmente viajo e faço o trabalho. Não preciso de me preocupar com a contratação de ninguém. A estrutura já está lá, já está feita. É muito agradável, mas também é uma forma diferente de trabalhar, porque só se tem um mês. Não conheces as pessoas, tens outro idioma, tens de ser inteligente e não ter como objectivo a perfeição. Mas tens de resolver as coisas rapidamente. Mas é bom, posso fazer experiências e isso é muito bom. Também economicamente, é muito bom. Quando trabalho com a Siberia Danza, procuro a profundidade, porque também trabalho com bailarinos que estão comigo há muito tempo. Assim, estamos a construir coisas juntos.

AO: Tem os mesmos bailarinos que tinha quando criou a companhia em 2016?
PM: Hoje está aqui a Amanda Rubia, esteve antes em Itália, depois esteve em Tenerife e agora estamos juntas outra vez. Assim, como o Jacob, por exemplo, estamos a trabalhar desde 2020. E hoje há uma nova, a Paula, que está a trabalhar comigo, como se fosse a primeira vez. E depois vai entrar na nova produção. Assim, de alguma forma, estou a construir uma equipa que pode continuar a desenvolver o material. Não do zero, mas sim.

AO: Para além dessa nova coreografia, o que gostaria de fazer que ainda não tenha feito?
PM: Um ballet clássico. Adoraria fazer um grande ballet, algo completamente diferente. Pagar num clássico e fazer uma coisa nova, seria um desafio. Pegar numa Cinderella, estou a dar um exemplo porque nem gosto muito da Cinderella, numa grande história, porque trabalho sempre com coisas muito abstractas. Adoro ballet e estudei muito todas as regras que estão dentro de um ballet. Mas agora não, talvez um dia.

Siberia Danza é uma companhia de dança contemporânea sediada em Barcelona e dirigida por Paloma Muñoz. Desde a sua fundação, a Siberia está em constante crescimento, realizando trabalhos em palco e em locais específicos. A peça “La Piel Vacía”, foi estreada em 2018 e foi premiada em várias competições nacionais e internacionais. Em 2020, “La Piel Vacía” esteve em digressão com a DanceNet Suécia. Em Outubro de 2020 estreou “Stone & Silk”, uma performance site-specific para o Castell de Montjuïc (Barcelona). Em 2021, estreou “L.E.V.E.” uma performance leve e acessível no Teatre Auditori de Sant Cugat (Catalunha). Siberia está actualmente a trabalhar numa nova produção a ser estreada em Outubro de 2024 em coprodução com o Mercat de les Flors em Barcelona.

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Sofia Quintas

Directora e jornalista do Almada Online