Marinha Portuguesa de costas voltadas para o Arsenal do Alfeite
A Marinha Portuguesa e o Arsenal do Alfeite sempre tiveram uma relação estreita, reconhecendo esta o trabalho do Arsenal como um trabalho de excelência. Infelizmente esta posição foi mudando com o tempo, e hoje temos uma Marinha que desconsidera totalmente o Arsenal e aceitou pacificamente a sua extinção e passagem para SA. Onde ficaram as promessas de modernização do Estaleiro?
Fui admitido no Arsenal do Alfeite em 1967, tinha acabado de fazer 15 anos. Nesse mesmo ano, a Lisnave ali ao lado, iniciava a sua atividade. Um imenso estaleiro a ocupar 30 hectares na Margueira, mais de 20 “conquistados” ao rio. Do tempo da Lisnave, resta o testemunho do pórtico de 300 toneladas e toda aquela zona, para a qual abundam palavras e projetos. Na realidade, não passa de uma enorme área que espera, não sabemos bem o quê.
O interessante de entrelaçar o início da atividade da Lisnave com o Arsenal do Alfeite, é o facto deste último ter iniciado a sua atividade em 1939 vindo de Lisboa, e nos anos sessenta contar com mão de obra qualificada na área da construção naval. Foi um alvo apetecível para a nova Lisnave, cuja gestão viu no Arsenal do Alfeite uma fonte de recrutamento. De facto, não foi difícil a adesão de operários e quadros técnicos que trocaram o Arsenal pela Lisnave. Uma das razões foi, sem dúvida, uma diferença salarial muito significativa.
Os anos áureos da Lisnave contaram com a mão de obra qualificada dos trabalhadores do Arsenal, que aí procuraram justamente melhores condições de trabalho e melhores salários. Poucos anos depois, no início da década de 70, a Setenave era implementada na Mitrena, em Setúbal. O Arsenal perdeu operários para estas duas grandes empresas devido à procura de melhores salários, regalias sociais e progressão na carreira profissional.
Por outro lado, a emigração também foi solução para quem ambicionava uma vida melhor e era contra a repressão desencadeada pelo regime fascista e pela obrigatoriedade de participar na Guerra Colonial. Muitos oponentes do regime optaram pelo exílio.
Naturalmente o Arsenal do Alfeite ressentiu-se da perda de mão de obra qualificada, e como forma de colmatar essa grande necessidade a administração recorreu à admissão de aprendizes, que passaram a constar no quadro de carreiras do Arsenal. A vantagem da aprendizagem era o facto de ser essencialmente prática e virada para as necessidades profissionais do Estaleiro. Assim o Arsenal foi conseguindo renovar a sua mão de obra qualificada.
O Arsenal manteve sempre o seu caminho de Construção e Reparação Naval e tem um longo historial de construções, como por exemplo o Navio Hidrográfico D. João de Castro, cuja encomenda feita ao Arsenal de Lisboa viu o seu lançamento à água acontecer já no Alfeite; os navios “Azevia” e “Bicuda”; o navio petroleiro “Sam Brás”; as lanchas de fiscalização de pesca “Corvina”, “Dourada“, “Espadilha” e “Fataça”; os arrastões de pesca “Portisham” e “Porta Ferry”; as vedetas de transporte de passageiros; a construção de patrulhas costeiros e rebocadores, entre muitos outros.
As últimas construções realizadas, já depois de 2000, foram três lanchas salva-vidas construídas em alumínio, entregues ao Instituto de Socorros a Náufragos (ISN), cujo projeto foi responsabilidade dos projetistas do Arsenal, tendo sido executadas de raiz na grande oficina de construção naval, por operários e engenheiros que uniram conhecimentos indispensáveis a estas construções. Ainda no ativo, com construção de 2007 existe o “Vigilante,” e de 2008 o “Atento” e o “Diligente. Este método de construção inovador começava a ganhar ritmo quando foi terminado abruptamente, e das sete lanchas previstas apenas se construíram três.
A grande viragem deu-se quando o poder político e o poder militar se “uniram para nos tramar”. Foi no ano fatídico de 2009 que aconteceu a extinção do Arsenal do Alfeite e o surgimento da Arsenal do Alfeite SA, com promessas de investimentos e modernização que nunca aconteceram. O que aconteceu de imediato foi a redução de 50% dos trabalhadores, que de 1200 passaram a ser 600. Actualmente, serão cerca de 400 os trabalhadores do estaleiro que vão resistindo.
A Marinha Portuguesa e o Arsenal do Alfeite sempre tiveram uma relação estreita, reconhecendo esta o trabalho do Arsenal como um trabalho de excelência. Infelizmente esta posição foi mudando com o tempo, e hoje temos uma Marinha que desconsidera totalmente o Arsenal e aceitou pacificamente a sua extinção e passagem para SA. Onde ficaram as promessas de modernização do Estaleiro?
Atualmente, a Marinha Portuguesa está mais entusiasmada com os contratos feitos com a empresa Turca STM (Savunma Teknolojileri Muhendislik VE TIC A.S.) para a construção de dois navios reabastecedores de esquadra com funções logísticas acrescidas. Este contrato entrou em vigor no passado dia 10 de Abril 2025, estando previsto o início da construção do primeiro dos dois navios dentro de 8 meses.
Estas construções, são certamente importantes e necessárias, mas fazê-las noutro país é impedir que o desenvolvimento tecnológico se faça no nosso, e todos sabemos da sua importância. Também sabemos que as maiores indústrias navais do mundo refletem a capacidade tecnológica, inovação e competitividade económica desses países, sendo assim mais que evidente o pouco significado que o Arsenal tem para a Marinha Portuguesa.
Também teve início a construção dos navios patrulha oceânicos da terceira série, no âmbito do contrato para a construção de seis destes navios, tendo-se realizado no dia 31 de Março de 2025 nos Estaleiros West Sea, em Viana do Castelo, a cerimónia do corte da primeira peça, que marca o início da construção do primeiro navio. Se nos Estaleiros West Sea existem duas docas secas e no Arsenal do Alfeite só existe uma, tal acontece pelo facto de nunca terem sido desbloqueadas as verbas para o prolongamento da doca seca do Arsenal, que a dotaria do dobro da capacidade que tem actualmente.
Se hoje faltam condições para a construção naval ser feita no velho Arsenal, isso fica a dever-se a um plano estratégico de assistir ao seu definhamento, quando se podia, e devia, ter-se mantido a sua tradição de construção naval. Tal caminho acarreta prejuízos de monta do ponto de vista histórico, e também para as gentes dos concelhos de Almada e Seixal, que vão assistindo ao fim de um setor em tempos pujante e agregador de milhares de postos de trabalho, que se vai tornando uma sombra daquilo que foi em tempos.
Merecia muito mais o Arsenal do Alfeite. No mínimo, o tão falado e prometido investimento na sua modernização, e a continuação da sua Escola de Formação, que tantos profissionais ajudou a formar.
Almada Online, Arsenal do Alfeite, BE, Crónica, Luís Filipe Pereira, Opinião