Habitação, Constituição da República Portuguesa e Responsabilidade Municipal
Esta “nova geração de políticas de habitação” atribui, da forma mais explícita que alguma vez aconteceu no quadro legislativo nacional, responsabilidades próprias aos municípios, definindo um quadro objetivo em que as autarquias locais são chamadas a cooperar com o Estado na construção das inadiáveis soluções habitacionais para o País.
A área da habitação constitui, hoje, a área de maior preocupação nacional. Almada não é exceção. No território do Município, o problema assume enorme dimensão, confrontando-nos com uma realidade profundamente marcada por enormes carências habitacionais.
As gritantes insuficiências nacionais em matéria de habitação foram formalmente reconhecidas em 2017, quando o então Governo do PS decidiu lançar um conjunto de iniciativas legislativas, a que chamou “nova geração de políticas de habitação”.
Na génese desta “nova geração”, dois objetivos bem definidos: “i) Garantir o acesso de todos a uma habitação adequada, entendida no sentido amplo de habitat e orientada para as pessoas, passando por um alargamento significativo do âmbito de beneficiários e da dimensão do parque habitacional com apoio público; ii) Criar as condições para que tanto a reabilitação do edificado como a reabilitação urbana passem de exceção a regra e se tornem nas formas de intervenção predominantes, tanto ao nível dos edifícios como das áreas urbanas”.
Esta “nova geração de políticas de habitação” atribui, da forma mais explícita que alguma vez aconteceu no quadro legislativo nacional, responsabilidades próprias aos municípios, definindo um quadro objetivo em que as autarquias locais são chamadas a cooperar com o Estado na construção das inadiáveis soluções habitacionais para o País.
Em 2019, entretanto, entrou em vigor a Lei de Bases da Habitação (LBH), a primeira lei de bases para a habitação na história da democracia portuguesa, ainda que a Constituição da República consagre o direito à habitação como um direito fundamental de todos os cidadãos residentes em Portugal desde 1976. A LBH representou, não obstante algumas insuficiências, um importante passo em frente no que respeita ao enquadramento jurídico-legal da intervenção pública em matéria de habitação em Portugal. Também a LBH atribui aos Municípios um papel relevante na solução para os problemas habitacionais registados no país.
Neste quadro de clara reorientação da visão política e jurídica relativas às soluções para os crescentes problemas habitacionais, nasceram as Estratégias Locais de Habitação (ELH). Em Almada, a ELH foi aprovada, em primeira versão, em 2019, e revista em 2021, numa versão que se mantém hoje em vigor sem qualquer outra alteração ou revisão.
Chegados aqui, importa olhar para aquilo que a Câmara Municipal de Almada vem concretizando no âmbito das suas responsabilidades no domínio da habitação.
Neste quadro, não é possível deixar de questionar, de forma fortemente crítica, um amplo conjunto de aspetos essenciais da política de habitação municipal nestes últimos cinco anos, que manifestamente não concorrem, muito pelo contrário, para que seja traçado e trilhado o caminho adequado, sólido e consistente no sentido da superação das graves carências habitacionais com que Almada se confronta.
A Lei de Bases da Habitação determina que as Câmaras Municipais elaborem anualmente o relatório municipal da habitação, que submetem a apreciação da Assembleia Municipal. Este relatório deve integrar o balanço da execução da política local de habitação e a sua eventual revisão, caso se verifique necessário (artigo 23º da LBH) – compreende-se esta determinação legal, primeiro porque a construção das soluções habitacionais deve passar pelo mais amplo debate e escrutínio públicos, sendo a Assembleia Municipal o órgão adequado para esse efeito ao nível local, depois porque o processo é naturalmente dinâmico, carecendo de avaliação permanente e de frequentes ajustamentos.
Até ao momento, passados cinco anos de vigência da LBH, nunca o atual executivo municipal submeteu qualquer relatório desta natureza à Assembleia Municipal. Não podemos deixar de nos interrogar sobre as razões que levam ao incumprimento daquilo que a Lei de Bases da Habitação estabelece de forma muito clara e objetiva, surpreendendo-nos, obviamente, o silêncio do executivo municipal nesta matéria.
A LBH estabelece, também, que os Municípios podem criar Conselhos Locais de Habitação, à semelhança do Conselho Nacional da Habitação criado para todo o país (artigo 24º da LBH). Não se entende por que razão a Câmara Municipal de Almada – que tem vindo a criar Conselhos Municipais sucessivos e em múltiplos domínios da sua atividade –, não criou até hoje o Conselho Local de Habitação. Razões haverá certamente, mas elas são para todos nós totalmente obscuras. Este Conselho Local poderia constituir-se, enquanto órgão consultivo e complementar ao papel da Assembleia Municipal, como um importante fórum de debate e abordagem dos problemas habitacionais do Concelho, e um contributo significativo para a definição de políticas municipais mais ajustadas e adequadas neste domínio.
Não aprofundarei, neste texto, a discussão sobre a capacidade de execução (melhor dizendo, a confrangedora falta dessa capacidade), revelada pela Câmara Municipal de Almada no que respeita àquelas que são as promessas eleitorais do maior partido que governa o município.
Mas importa registar que dos mais de 400 fogos de habitação a custos controlados, que em 2021 o PS fez incluir no seu programa eleitoral como promessa aos Almadenses, neste momento estão em construção 14 e apalavrados mais 52. A um ano, sensivelmente, do fim do atual mandato, percebemos todos que aquela promessa eleitoral já foi… para mal, naturalmente, dos muitos almadenses que esperam e desesperam por uma solução habitacional condigna, como é seu direito à luz da Constituição da República Portuguesa.
Depois…, depois retomo aqui a situação criada em Penajoia, Freguesia do Pragal.
Uma situação que não pode deixar de ser caracterizada senão como de uma enorme e gritante degradação humana e social.
Para quem, como o PS, passou anos a acusar outros de negligência neste domínio, de forma, aliás, absolutamente inconsequente e falaciosa, a situação hoje vivida em Penajoia não abona em nada os créditos do próprio PS e da sua maioria no Município de Almada…
A situação vivida por centenas de seres humanos como nós, instalados naquela área do território de Almada em condições muito precárias, não por vontade própria, mas pela ausência de alternativas viáveis e condignas de habitação, interpela-nos em permanência de forma crua e violenta, e devia impor-nos a todos um olhar, uma postura e uma intervenção concreta na procura ativa de soluções que respondam positivamente ao apelo que aquelas centenas de residentes nos deixam: “só queremos ser tratados com dignidade, como a CRP e as leis determinam que sejamos!”, é aquilo que nos dizem estas centenas de pessoas, almadenses como nós.
A situação vivida por aquelas centenas de seres humanos em Penajoia, não se compadece com a baixa política do “passa culpas” e do “empurrar o problema com a barriga”, passe a maior ligeireza da expressão, com que a Câmara Municipal de Almada tem lidado com este problema.
Mais do que isso, aquela situação não se compadece – ainda se compadece menos! –, com uma postura de arrogância e de prepotência, que leva uma vereadora eleita na Câmara Municipal a notificar aqueles cidadãos, vítimas de uma situação pela qual não são responsáveis, ameaçando-os da aplicação de pesadas coimas por “construção ilegal”, e ameaçando-os de demolição das suas mais que precárias habitações.
É um facto que esta postura nem sequer espanta já em demasia. Ela acontece, afinal, na sequência (lógica?) da vanglória afirmada pela mesma Câmara Municipal, quando o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), na primeira fase de todo este processo, intimou os residentes naqueles terrenos – que são propriedade daquele instituto público –, a abandonar o local no prazo de 10 dias.
A mesma Câmara Municipal que então bateu palmas, ufana, ao anúncio desta intenção de proceder a uma intervenção musculada por parte do IHRU, é exatamente a mesma Câmara Municipal que agora procura intimidar os residentes em Penajoia, com base numa mais que bacoca afirmação da necessidade de cumprimento de regras e de leis.
Abro um parêntesis apenas para anotar que o Grupo Parlamentar do PCP na Assembleia da República me fez chegar a resposta do Governo a uma pergunta daquele Grupo, precisamente sobre a situação em Penajoia. Nessa resposta, entre outras garantias, o Governo assegura que não haverá desalojamentos enquanto não estiver garantida uma solução habitacional digna para todos os residentes naquele local. A Câmara Municipal de Almada, pelos vistos, quiçá mais “papista que o Papa”, parece não querer seguir as mesmas pisadas… Fim do parêntesis.
Leis e regras são para se cumprir, ninguém o contesta. Mas então, que se cumpra em primeiro lugar a lei fundamental do país, a Constituição da República Portuguesa, e a Lei de Bases da Habitação. Estas cumpridas, deixaremos com toda a probabilidade de ouvir afirmações de vereadores como aquelas que ouvimos, tristemente, numa reunião da Câmara Municipal recentemente realizada.
Os graves problemas de habitação em geral, e os problemas específicos colocados em Penajoia, não são resolúveis num quadro de conflitualidade, arrogância e prepotência. Exigem, ao contrário, o estabelecimento de um diálogo construtivo, sério e ponderado, e exigem, sobretudo, uma postura de respeito integral pela condição humana daqueles que são os primeiros a sofrer, e aqueles que mais profundamente sofrem, as consequências da total incapacidade para executar plenamente aquilo que o artigo 65º da Constituição da República Portuguesa determina, revelada pelo Estado e pelas diferentes entidades públicas responsáveis ao longo das últimas cinco décadas.
Os residentes em Penajoia não podem ser multados nem podem ser perseguidos! A acontecer, traduzirá uma medida punitiva totalmente desproporcional, puramente revanchista e absolutamente desumana! É imperioso que a Câmara Municipal inverta a postura e o caminho que vem percorrendo, desenvolvendo no seu lugar, como é sua obrigação enquanto entidade pública que tem de zelar por todos os cidadãos que vivem no território que administra, um processo de diálogo construtivo que abra caminho a uma solução que respeite plenamente os direitos e a dignidade de todos os envolvidos naquele problema.
Almada Online, CDU, Crónica, João Geraldes, Opinião