A Câmara de Almada vai demolir o Cais do Ginjal

Com vista para Lisboa e de costas voltadas para a dignidade, o Cais do Ginjal foi nesta primavera cercado por um muro - um muro que não protege, mas que exclui. No coração da Almada ribeirinha erguem-se agora fronteiras onde deviam construir-se pontes.

O Cais do Ginjal, outrora um dos lugares mais emblemáticos de Almada, tornou-se hoje o retrato de um fracasso político e estratégico imperdoável. Ao longo dos últimos dois mandatos, a Câmara Municipal de Almada, gestionada pela toda-poderosa baronesa Inês de Medeiros e pelo seu executivo socialista, deixou o Ginjal apodrecer. Promessas não faltaram – chegou a anunciar-se com pompa e circunstância um grande projeto de requalificação, exibido em maqueta em 2018. A realidade, porém, é muito diferente. Sete anos passaram e nada aconteceu, a não ser o aprofundamento da degradação do cais e do seu património histórico. Agora, já esquecida aquela maqueta cheia de mentiras, tudo o que temos no Ginjal são ruínas perigosas, um muro de betão a barrar um património de todos, e dezenas de pessoas desalojadas em condições indignas – que bela “obra”, senhora baronesa!

Recordemos esse projeto presidencial para o Ginjal, celebrado em anúncios e apresentações públicas. Em 2018, a Sra. Medeiros revelou um plano ambicioso, com direito a exposição no Fórum Romeu Correia e garantias de que o espaço seria requalificado para usufruto de todos. A baronesa, então recém-chegada à presidência da Câmara, encheu-se do entusiasmo habitual – mas também os almadenses se viram esperançados com a idealização de uma visão para um lugar único na nossa frente ribeirinha. Peço que me perdoem, mas ando nisto há muitos anos e acho que foram ingénuos.

Depressa esse entusiasmo se revelou infundado. A maquete bonita ficou a enfeitar o gabinete presidencial, enquanto no terreno nada avançou. É o que geralmente acontece com as mentiras na política. E a Sra. Medeiros rapidamente encontrou bodes expiatórios para a estagnação: queixas de que o Plano de Pormenor do Ginjal estava “parado na justiça” por culpa do Estado, que a Administração do Porto de Lisboa (APL) não dava aval ao projecto, que o Governo (do seu querido PS) isto e aquilo. Desculpas não faltaram. O que faltou foi obra. Não houve nenhuma. Mais uma vez, só mentiras.

É certo que houve impasses jurídicos – o Grupo AFA (proprietário de 90% dos terrenos e com quem a presidente mercadejou o território) e organismos do Estado embrulharam-se em disputas legais sobre jurisdição e responsabilidades. Nada disso iliba a Câmara da sua inércia e incompetência. Pelo contrário, a situação do Ginjal expõe a hipocrisia e falsidade de Inês de Medeiros: passou anos a lamentar bloqueios e a empurrar culpas para terceiros, enquanto o património e infraestrutura se degradavam a olhos vistos. Nos discursos, a Presidente dizia que “esta requalificação poderia estar feita” não fosse o Estado e a APL travarem os processos. Porém, pergunto: o que fez a Câmara de Almada, concretamente, para assegurar a salvaguarda mínima daquele espaço enquanto o projeto não avançava? Nada! Nem manutenção básica, nem soluções provisórias de segurança – apenas abandono e mentira. O resultado? Estruturas corroídas, pavimento a colapsar, e edifícios em risco de derrocada com avisos de “Perigo de Ruína” por toda a parte. Ainda assim, a Presidente ousou demostrar “grande surpresa” quando a APL recentemente lhe respondeu que a responsabilidade pela margem urbana do Ginjal é do município. Surpresa porquê? Mais uma fuga à verdade? Depois de anos a lavar as mãos como Pilatos (que bem que se adequa à época que vivemos!), Inês de Medeiros colhe agora os espinhos da sua profunda e inegável incompetência. E das mentiras, das muitas mentiras.

Chegados a 2025, o cenário tornou-se tão calamitoso que a Câmara não teve outro remédio senão decretar uma “situação de alerta” e interditar o Cais do Ginjal por motivos de segurança. Era, mais uma vez, como no Segundo Torrão, caso de vida ou morte, disseram-nos. E assim, à pressa, veio a ordem de despejo das dezenas de pessoas que ali viviam há anos em edifícios devolutos – cerca de 50 moradores, incluindo idosos e famílias com crianças, que tinham encontrado no Ginjal um refúgio face à falta de habitação no concelho. Ninguém questiona que o local era perigoso; a questão é como se deixou chegar a este ponto.

E, como habitual, a solução de emergência da Câmara revelou uma crueldade e impreparação chocantes. Os moradores foram obrigados a sair quase de um dia para o outro (muitos tiveram de faltar ao trabalho ou à escola), e foram inicialmente realojados num balneário escolar improvisado – o pavilhão desportivo da Escola Anselmo de Andrade – onde cada família ficou dividida apenas por baias de metal, sem privacidade, a dormir em camas de campanha e com recolher obrigatório às 22h. Tratou-se, literalmente, de alojar pessoas em condições de abrigo de emergência, como quem armazena material numa arrecadação. Não admira que logo surgissem denúncias sobre a falta de dignidade desta solução. Também não surpreende, conhecendo nós o que aconteceu aquando do realojamento do Segundo Torrão – senhora presidente, vá para lá dormir a senhora!

Confrontada com críticas, a autarquia tentou rapidamente remendar a situação. Alegou ter encontrado “respostas temporárias de emergência mais adequadas” para 18 pessoas que ainda precisavam de apoio, desactivando a tal zona de acolhimento improvisada na escola. E quais eram essas respostas “mais adequadas”? Hostels sobrelotados em São João da Caparica, segundo revelou a imprensa. Nalguns casos, enfiaram famílias inteiras em quartos minúsculos – um exemplo: três pessoas atiradas para um quarto com menos de 6 m², onde mal cabem uma cama e um beliche, e com casa de banho partilhada com os restantes hóspedes. Um cenário terceiro-mundista, indigno de um país civilizado e de uma Câmara que se diz preocupada com a habitação. Mais uma vez – vá para lá dormir a senhora! A própria razão dada para se fechar o pavilhão escolar – “más condições de alojamento” – demonstra bem a trapalhada: primeiro colocam as pessoas em condições péssimas, depois tiram-nas de lá por reconhecer que eram péssimas. Irresponsabilidade e hipocrisia andam de mãos dadas neste processo, às custas dos pobres e dos mais vulneráveis.

Os moradores do Ginjal, compreensivelmente, sentem-se enganados e maltratados. Muitos não sabem o que será do seu futuro após estas soluções temporárias acabarem. Passada a urgência mediática, quem garante que não serão simplesmente despejados outra vez, sem alternativa digna? Houve relatos de moradores desesperados com a falta de informação sobre os seus bens – obrigados a deixar pertences para trás na pressa do despejo – e sobre como vão recuperar a normalidade de vida, desde levar os filhos à escola até chegar ao trabalho estando alojados longe. A Proteção Civil municipal teve de ser mobilizada para recolher e catalogar os bens deixados nos edifícios, como se de destroços pós-catástrofe se tratasse. E de certa forma, é mesmo uma catástrofe – só que não foi um sismo nem uma inundação a causar isto, foi a negligência continuada de quem governa Almada.

Como ato final desta triste ópera, a Câmara decidiu erguer um muro de betão com mais de dois metros de altura para vedar todo o Cais do Ginjal. Sim, leu bem: depois de anos sem mexer uma palha para reabilitar o Ginjal, a obra que Inês de Medeiros deixa no local é um belo muro, com portão e tudo, trancado a sete chaves (aliás, com chave só na mão da própria). Segundo a Presidente, “Perigo é perigo e a razão pela qual foi tomada a decisão de pôr um muro e um portão é para não haver romarias” de curiosos. De facto, nada para ver aqui, sigam em frente… A paisagem magnífica para Lisboa agora tem este monumento ao fracasso a cortar a vista. O Ginjal está murado e interdito, talvez por tempo indefinido. É caso para dizer: se não sabem resolver, isolam e escondem o problema debaixo do tapete – ou atrás de um muro. A nossa baronesa pode até ter as suas origens em Paris, mas as suas inspirações são, certamente, da Alemanha do século passado.

Mais escandalosa ainda é a decisão de demolir toda a frente ribeirinha do Ginjal, anunciada recentemente numa reunião de câmara. Aqueles armazéns e edifícios históricos, que faziam parte da identidade do lugar e que o plano de requalificação prometia recuperar e preservar, vão agora abaixo por força do buldozer presidencial. Depois de anos a permitir que ficassem em ruínas, a solução do executivo é arrasá-los por completo – um desfecho “brilhante”. Primeiro deixam chegar ao ponto de não retorno, depois declaram que a única saída é deitar tudo abaixo.

A Administração do Porto de Lisboa, que durante muito tempo andou de empurrão com a Câmara sobre quem devia agir, apresentou enfim um estudo técnico que confirma o que qualquer transeunte já percebia: há corrosão estrutural grave no cais, um risco iminente de colapso. Não surpreende: décadas sem manutenção só podiam transformar o velho cais num queijo suíço prestes a desfazer-se. Este relatório tardio da APL serve agora de justificação “científica” para a demolição total. Mas na verdade, é a certidão de óbito de um lugar que morreu por abandono. Ao demolir-se o pouco que resta de pé, perde-se irreversivelmente um pedaço do património almadense – obra, repito, da incúria de sucessivos responsáveis autárquicos, agravada nos últimos oito anos.

Em suma, o caso do Cais do Ginjal é uma vergonha que recai diretamente sobre Inês de Medeiros e o seu executivo socialista. É o símbolo maior da sua irresponsabilidade, falta de visão, e incompetência épica. Durante dois mandatos, faltou-lhes competência para executar o projeto que eles mesmos anunciaram com grande fanfarra. Faltou-lhes respeito pelos moradores que lá viviam, tratados agora como lixo a deitar fora. Faltou-lhes estratégia para salvar um local único – e acabaram por optar por aniquilá-lo. E sobrou-lhes, isso sim, hipocrisia: a Presidente jamais reconheceu a própria falha, preferindo culpar tudo e todos – o Estado, a APL, os privados, a meteorologia – enquanto Almada perdia um dos seus lugares mais especiais.

Esta crónica de um abandono deixa-me indignado. O Ginjal poderia ser hoje um polo cultural, turístico e de lazer, revitalizado com habitação, com espaços verdes, com vida. Em vez disso, foi convertido numa zona interditada, cercada por um muro da vergonha, prestes a ser reduzida a entulho. Os almadenses perguntam: quem vai ser responsabilizado por este desastre anunciado? Quem assume o falhanço político de ter deixado o Ginjal chegar a este ponto?

Inês de Medeiros certamente tentará sacudir a água do capote e irá dormir descansada para Campo de Ourique – mas não há propaganda que lave as mãos sujas deste episódio. O Ginjal apodreceu aos olhos de todos, e com ele apodreceu também a confiança dos cidadãos numa Câmara que virou costas ao seu património e às suas gentes.

Almada e o Ginjal merecem muito melhor. Merecem líderes que façam acontecer, e não que arranjem desculpas. Merecem uma Câmara que previna a degradação de um dos seus ex-líbris, em vez de assistir impávida até à ruína total e de se perder em negociatas. Resta-nos a revolta e a tristeza de ver desaparecer um cenário único do nosso concelho, transformado num case study de governação estúpida, inconsciente, e incompetente. O Ginjal chegou ao fim da linha – e a responsabilidade tem nome e apelido. Inês de Medeiros. Inês de Medeiros falhou, e Almada não esquecerá tão cedo. A memória do Ginjal – e desta gestão desastrosa – perdurará como um aviso sobre os perigos da incompetência mascarada de boas intenções. Almada saberá julgar quem lhe prometeu um futuro risonho no Ginjal e entregou, em vez disso, um deserto de promessas vazias.

O muro do Ginjal não é apenas de cimento — é feito de anos de silêncio, de promessas adiadas, de uma Almada que olha o Tejo mas que não se reconhece nele. Está na hora de derrubar este muro, pedra a pedra, com visão, com coragem, e com futuro.

Este ano há eleições e podemos acabar com esta pouca vergonha.

PS: Morreu o Papa Francisco. Nestes dias em que nos despedimos da sua presença física, presto-lhe aqui a minha homenagem. Foi um farol de lucidez num mundo tantas vezes cego, e uma voz serena mas firme a lembrar que a dignidade humana, a justiça e a compaixão devem estar no centro da existência. Que o seu legado perdure para lá do tempo — como semente viva de esperança e mensagem de fé no futuro das nossas comunidades.

David Cristóvão

Eleito do PSD na Assembleia da União de Freguesias de Caparica e Trafaria

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