Noite em que sonhei que o “Mercado das Madrugadas” poderia acontecer em Almada
A peça, estreada a 24 de Abril de 2024, tem a autoria, texto e encenação, de Patrícia Portela, numa produção do Teatro Nacional D. María II e Aveiro Capital Nacional da Cultura 24
Noite em que sonhei que o “Mercado das Madrugadas” poderia acontecer, vir mesmo a acontecer na Praça São João Baptista, em Almada.
A peça, estreada a 24 de Abril de 2024, tem a autoria, texto e encenação, de Patrícia Portela, numa produção do Teatro Nacional D. María II e Aveiro Capital Nacional da Cultura 24. Ela que nasceu no ano de 1974, durante o Golpe das Caldas, como se lê no livro agora publicado, a cujo lançamento assisti na tarde de 26 de Abril deste 2025, no Bar do Coliseu dos Recreios, à vez com a peça “irmã” Quis Saber Quem Sou, de Pedro Penim, que nessa noite, em lotação esgotada, foi representada de novo em Lisboa, agora ali mesmo, no Coliseu. Ambas com a chancela do TNDMII e da editora Bicho-do-Mato.
Os dois espectáculos vi com encenações dos seus autores. Quis Saber Quem Sou, quando estreou em Abril de 2024 no Teatro São Luiz, entre o concerto e a peça de teatro, um concerto teatral, como lhe chamou Pedro Penim, em revisita às canções da Revolução, com direcção musical de Filipe Sambado; Mercado das Madrugadas, em Lisboa, no Largo de São Domingos, na lateral, sabemos, do edifício do Teatro Nacional. Em suma, dois livros que aqui recomendo, antes de mais por que é de teatro que falamos neste tempo memorável, 50+1 anos da Liberdade.

Voltando a Almada, especificamente à praça de São João Baptista, já que Patrícia Portela assinala que o objectivo da sua peça é com os seus intérpretes percorrerem todas as cidades, todas as praças, todas as possibilidades, para que 25 de Abril Sempre! – o epíteto lançado espontaneamente por Jorge Sampaio – e Fascismo nunca mais! E a verdade é que Patrícia, nome de pessoa forte e determinada, não tem medo.
Por sinal, nascida, como antes se disse, durante o Golpe das Caldas, percursor da Revolução de 25 de Abril, foi por ela que vimos recentemente em Almada (5 e 6 de Abril no Teatro Municipal Joaquim Benite) o espectáculo Aventuras, essencialmente a percorrer a história de um João Sem Medo: Aventuras de João Sem Medo, da autoria de José Gomes Ferreira (1900-1985), o escritor, poeta formidável, ainda assim tão esquecido, que expressou num parênteses “Dois saltos de alegria no coração” quando, finalmente, achou o nome para o seu herói, com muita alegria de existir e de inventar monstros para os destruir e vencer. Ora, digo-vos que foi inesquecível , inspirador até, ver neste espectáculo interactivo as crianças no público, a chegarem-se à frente, soltas dos pais, fazendo frente ao Medo. Aliás, no muro inicial do cenário, também de Patrícia Portela, antes de o afrontarmos, lembrei o aviso contido na narrativa de JGF, também um alerta ao público do vertente espectáculo “É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”. Ou seja, ficariam à porta os falsos adultos que sujam o mundo e odeiam a imaginação, por não saberem guardar a Criança dentro de si. Por fim, também a reconhecemos em texto próprio para o espectáculo sobre o 25 de Abril, “A Sorte Que Tivemos”, entre outros autores, com encenação de Teresa Gafeira, no TMJB.
E assim, continuando a citar a nossa Revolução, voltamos ao Mercado das Madrugadas, que é, afinal, no dizer da autora e encenadora, um manual para as mais urgentes revoluções futuras, pois que sente (não o sentiremos nós também?) que urge outra vez lutar. Sem medos, contra a indiferença, abrir de novo a flor de Abril.
A memória e o sonho ocupariam o espaço público, Almada transformar-se-ia então numa praça aberta, essa rasgada Praça de São João Baptista, como quem semeia possibilidades. O Teatro sairia à rua para muitas especiais trocas, evocando esse dia inicial inteiro e limpo, de Sophia, aquele tempo em que sentimos que tudo era possível, tomando agora conta do que falta fazer. Não fico de fora. Precisaremos talvez de companhia, para aguentar tempos de muitos perigos, e juntos imaginarmos essas revoluções que dizem Futuro.
Junta-te a nós! (dita-me o sonho) Vem ouvir os performers “guerrilheiros”, contadores de histórias. E eventual público almadense, se vos sentirdes à vontade, podereis no fim acrescentar uma história, que será a vossa. “Há pessoas que têm muitas histórias na cabeça… Essas pessoas são ricas… (lembro na voz de João Grosso). Ora, imaginai se não é bonito (estamos no arranque da peça que se inicia sempre com o pôr do sol) e transcrevo a didascália de Patricia Portela: Uma praça vazia. Ninguém em cena, apenas um pouco de gravilha no chão e uma banda sonora de pássaros que anuncia a madrugada. Uma pessoa ocupa o espaço de gravilha e, sem sair do sítio, marca o mesmo ritmo dos passos de Francisco Fanhais que anunciam a canção “ Grândola Vila Morena”. Uma canção que, ao longo desta peça, será várias vezes murmurada, mas nunca tocada ou cantada. Ao longe, avistam-se os carrinhos do mercado empurrados pela equipa do Mercado das Madrugadas. Entram na peça, entoando uma canção de pescadores: “O Alar da Rede” (recolha de Giacometti, 1962). Empurrando as banquinhas de mercado, os actores contornam a praça, criando a arena onde irão actuar e escolhendo o lugar para montar o seu estaminé. Lê-se na nota 2, da obra publicada, que o Alar da Rede é um cantar que acompanha o movimento de puxar as redes com peixe para dentro do barco. Um pescador dá as ordens e impõe o ritmo aos restantes pescadores.
Ah julgo que sorri no meu sonho… pois, a atmosfera é perfeita, por perto está o mar da Caparica e a boa memória dos antigos pescadores (lembro Romeu Correia, o escritor almadense que lhes deu voz em Calamento, romance de 1950).
Seja o espectáculo de Patrícia Portela trazido à cena, sejam aqueles que desejem alguma vez pôr esta peça em cena, não é de abandonar a inventiva. E não é que bem sonora ainda oiço a voz do Diogo Dória:
Almada Online, Crónica, Maria Emilia Castanheira, Opinião, TeatroTodas as praças são de Versalhes e de São Marcos, são de Abril e são de Maio. A qualquer momento, numa praça, pode acontecer uma Revolução, pode-se celebrar uma festa, pode-se ser fuzilado, pode-se sobreviver, morrer, testemunhar, olhar para o lado.