“Nós queremos ficar aqui nesta margem”
Falo de dois espectáculos que vi nos últimos dias da 29ª Mostra de Teatro, por isso os trago para o mês de Dezembro, que ora começa.
Cumprindo o desígnio antes traçado, com gosto aplaudi no Salão das Carochas, “Uma Pedra no Sapato”. Espectáculo que derivou de acções de formação (voz, movimento e interpretação), oficinas abertas à Comunidade, traduzidas em improvisações à volta dos mitos fundadores da cidade de Almada, no lugar mais apropriado, o Centro de Arqueologia de Almada. Assinaram o texto Francisco Silva e Rui Silvares, a encenação é de Ana Nave, cuja causa do Teatro Comunitário abraçou há alguns anos, sendo este já o quinto espectáculo que ergueu no feliz encontro com a comunidade de Almada.
Lembro A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, e o aproveitamento sensível que fez do espaço sui generis do Salão das Carochas para toda a representação. Também aqui tirou partido do espaço em corredor, por onde desliza o grupo coeso de intérpretes que se divertem e nos divertem com Uma Pedra no Sapato. A acção passa-se num Musical, e dominam canções relativas a Almada;
A nossa causa é a Cidade, dizem. E lá vem o eterno Cacilheiro e Essa vida dos Da Weasel, banda hip hop formada em Almada, Dá-me um batuque/Que eu preciso dançar/Dá-me um puro som/….

[Nota quase prévia: Não quer dizer que seja esta a ordem das cenas, mas é como e do que mais me lembro, ainda com alguma ajuda de uma das actrizes, a Elsa Viegas]
E vozes irrompem:
“- Mas o que caracteriza a malta?
– Precisamos de um tema
– O rio é que nos une.
– A margem Sul é que nos distingue.
– Mas o que é que temos aqui?
– O que é que nos distingue dos outros, afinal?”
E vozes, à vez, vão respondendo:
“A importância estratégica militar, olha o Forte do Castelo!
– Os Estaleiros!
– As Colectividades!
– As danças! As bandas filarmónicas!
– O Teatro de Revista!
– Os cacilheiros! Os cacilheiros!”
Eles próprios ali ecoando em jeito de Revista.
“- A festa popular do São João!”
(Bom, em paralelo com o Porto e não atingirá a loucura da noite lá, penso)
“- Tanta música, tanta música de intervenção e o Rock!”
(Sim, lembro-me da exposição comemorativa dos 40 anos dos UHF, no Museu da Cidade. Nascidos em Almada (1978), assumem a pertença à margem sul e são uma das bandas protagonistas da explosão do rock em Portugal.)
“- E os grupos teatrais, amadores, profissionais!
– O Festival de Teatro! A Mostra de Teatro!”
E a propósito do teatro que querem fazer (um espectáculo em construção) surgem as facções:
“- Eu voto no Frei Luís de Sousa! A acção passa-se aqui.”
E lembro ali mesmo na vertical ao Salão das Carochas a Rua Manuel de Sousa Coutinho, a subir até ao Seminário.
“- Ah, eu voto no Auto da Índia!
– E a trama decorre na casa da Constança, que,além do mais, é uma Mulher!” (diz uma, claro).
Sorrio e lembro realmente que este auto de Gil Vicente foi representado pela primeira vez em Almada, corria o ano de 1509. E, como não lembrar o Auto da Índia estreado em Coimbra, pelo TEUC (1988), na encenação do saudoso Rogério de Carvalho, angolano e que fixou residência em Almada.
O fluxo cómico de intervenções é tanto que não me lembro se foi citada alguma peça de Romeu Correia, o dramaturgo almadense. Mas lembro quase perfeitamente a recreação musical tão bem entoada da história das origens de Almada.
Logo no início do espectáculo, um fresco aperitivo:
“Não sabemos onde começa o Mundo
Mas sabemos onde acaba
Acaba aqui.
Tem de chegar a algum lugar
Um grande rio
Que nasce onde o Mundo começa
Vem desaguar no fim do mundo
Mais precisamente aqui
Antes de se lançar no Mar sem fim
O rio forma uma grande baía”
….
“A malta que seguiu o Rio até à Foz
E encontrou o fim do mundo”
….
Por fim, é um licor ou um brandy, como vos aprouver, este final do coro, e na cor das vozes:
“A margem sul é sombria
Talvez por isso acorrem a esta cidade
Muitos viajantes do Mundo
Mas demoram muito mais tempo
Muito mais tempo a crescer
Porque a grande cidade é
Do outro lado do rio
É para onde toda a gente quer ir
E nós queremos ficar aqui
Nesta margem
Mais precisamente aqui!”
Já o disse antes, quando em Novembro falei do interesse que me suscitava este espectáculo na Mostra de Teatro, tanto pelo tema como pela causa do Teatro Comunitário abraçada pela encenadora. Deixo agora parabéns pela concretização do texto apreciável e a todos que constam da ficha técnica, muito particularmente ao grupo coeso de intérpretes, pela entrega, energia e vitalidade, dirigidos por uma actriz de Almada, Ana Nave, cujos palcos da Capital são seus, já o disse antes, mas sempre ligada ao Concelho com distintos trabalhos de encenação, e que há muito admiro.

Sigo, aliás, na admiração por outro actor de Almada, João Tempera, um dos três fundadores de outra realidade em Almada, a Aletria Biblioteca Itinerante (2022), com envolvimento na comunidade e na vida artística da cidade, já que os restantes elementos têm formação na área da educação e da música, e há três anos, pois, que os três acrescentam vida à Cidade e ao Concelho, através dos livros e de oficinas e conversas de aproximação.
E no último sábado, 30 de Novembro, aconteceu a estreia teatral da Aletria, com um espectáculo de rua, nada mais nada menos, com a adaptação teatral de “A Metamorfose”, de Kafka. Uma versão infantil, já que as crianças expressam o maior entusiasmo pela Aletria.
A noite estava fria mas nem por isso o público adulto e infantil deixou de comparecer no amplo Largo do Tribunal (aprendi o nome: Largo Gabriel Pedro), que se encheu de vida e alegria, ao ouvir a história do pequeno Gregório Samsa, que se recusou a sair do quarto, por ter acordado transformado numa barata.
Estratégia para não ir à escola?

Música, formas animadas e sombras, com um actor narrador (João Tempera), bem vestido, divertido e ágil, a fazer soltar as primeiras gargalhadas das crianças, sobretudo quando no seu discurso quase pisava uma barata, minúsculo adereço no chão, e ele próprio meio-barata, com uma enorme, colorida, esculpida nas costas.
Mas todos, afinal, atingidos pela história, quantas vezes, muitas (!), a correr como baratas tontas, neste tempo de vertigem… e as crianças vítimas atrás. E é quando ouvimos quase no final dos 40 minutos desta poética Metamorfose: a história ensina-nos que o tempo é passageiro e precioso. Apreendê-lo é também uma arte! Muitos aplausos. Linda noite ao ar livre.
É Natal, podemos quase já dizer.
Também na categoria de teatro para a infância, a Companhia de Teatro de Almada estreou “A Música Mágica de Mozart”, numa criação de Pedro Proença e Teresa Gafeira. Aguça-me a curiosidade, ainda não vi.
Leio no anúncio que até os bebés podem assistir, deixam de chorar e ficam logo bem dispostos; percebem que não podem ouvir a música se estiverem aos berros. Em cena, de 29 Nov a 21 Dez, na Sala de Ensaios do TMJB, sábados 16h00 e domingos 11h00 e 15h00. Para Escolas, nos dias úteis, por marcação.
Ide, pois, com as vossas crianças ao Teatro!
Um Feliz Natal!



