A Câmara Municipal quer fugir, mas é responsável por Penajoia!

Nos termos da Lei de Bases da Habitação, e da legislação e regulamentação que lhe sucedeu, não pode haver lugar a demolições de habitações, a não ser quando já existam soluções de realojamento. 

Há pouco mais de um ano, a CDU interveio na Assembleia Municipal alertando para o crescimento do número de habitações autoconstruídas instaladas na área de Penajoia (Pragal). 

Desde essa data a situação agravou-se substancialmente. Regista-se hoje um crescimento exponencial do número daquele tipo de habitações naquela área do território municipal, envolvendo, segundo números avançados por diferentes organizações que acompanham a situação no terreno, perto de 160 famílias, estimando-se que se encontrem afetadas cerca de 350 pessoas, seres humanos como nós, entre as quais 60 crianças, seis bebés, 17 adolescentes e mais de duas dezenas de pessoas idosas, doentes crónicos e mulheres grávidas.

É inquestionável que nos encontramos perante uma grave emergência social! 

Situação para a qual é urgente encontrar solução adequada, que respeite o quadro constitucional vigente, que atribui ao Estado a responsabilidade por assegurar que todos os cidadãos residentes em território nacional “têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar” (nº 1, do artigo 65º da CRP).

Esta realidade, aliás intransponível, é incompatível com o “passa culpas” – entre a Câmara Municipal e o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) – quanto à responsabilidade pela resolução da situação registada em Penajoia! Mas a verdade é que esse “passa culpas” já começou.

O mais chocante em toda a encenação entre culpados e não culpados, é a afirmação perentória, mas profundamente cínica, da Câmara Municipal de Almada, pela voz da Vereadora Francisca Parreira repetida já em diferentes momentos, de que o Município não assume qualquer responsabilidade na procura de soluções habitacionais adequadas para as famílias instaladas de forma precária em Penajoia – apenas “acompanha” a situação, diz a Vereadora que o faz com interesse… –, remetendo essa responsabilidade, em exclusivo, para o IHRU. Aquele instituto público veio já a terreiro fazer precisamente a mesma coisa: atribuir a responsabilidade pela resolução da situação para a entidade local que gere o território em termos urbanísticos, leia-se, a Câmara Municipal.

Esta encenação tem um outro significado. Nos termos da Lei de Bases da Habitação, e da legislação e regulamentação que lhe sucedeu, não pode haver lugar a demolições de habitações, a não ser quando já existam soluções de realojamento. 

De acordo com a lei, nenhuma pessoa pode ficar sem teto. O IHRU não pode, por isso, demolir nenhuma destas habitações, conforme afirma que fará no edital que fez publicar, sem assegurar a cada uma destas famílias uma solução de habitação permanente e condigna. Se o fizer, estará a atuar ilegalmente, contribuindo ele próprio, um instituo público, para o agravamento do flagelo com que, diz, pretende acabar. Mas também a Câmara Municipal de Almada não pode permitir que essa demolição sem soluções alternativas venha a ocorrer, sob pena de ser a própria Câmara Municipal a incumprir a Lei de Bases da Habitação, à qual está, necessariamente, obrigada. 

O que se exige é responsabilidade. De todos os organismos e instituições com competências no quadro da habitação. Todos!

À cabeça, naturalmente, a Câmara Municipal – que sim, assumiu competências que muito claramente atribuem ao município responsabilidades pela gestão deste problema, por muito que a Presidente da Câmara Municipal queira fazer crer o contrário! –, e o IHRU, que foi criado, existe e tem de intervir no sentido de executar as políticas nacionais de habitação, visando, precisamente, o estrito cumprimento da disposição constitucional referida.

Para se entender o que está em causa, importa um pouco de história. Até 2018 não existiu, em Portugal, uma política articulada, coerente e menos ainda consistente, de promoção da habitação para todos. A ausência (quase) total de legislação nesta matéria foi o mote, até ao nascimento da designada “Nova Geração de Políticas de Habitação”.

Apresentado publicamente pelo Governo do Partido Socialista em outubro de 2017 (curiosamente, o mês em que o mesmo partido assumiu a presidência da Câmara Municipal de Almada…), esta nova política conheceu a primeira consagração legal em 2 de maio de 2018, com a aprovação e publicação da Resolução do Conselho de Ministros nº 50-A/2018. Seguiu-se um vasto conjunto de diplomas legais que deram expressão concreta a esta nova estratégia, destacando-se os programas Porta de Entrada (Decreto-Lei nº 29/2018, de 4 de maio) e 1º Direito (Decreto-Lei nº 27/2018, de 4 de junho). 

Poderíamos citar alguns outros diplomas que concorrem, a partir de 2018, para a alteração significativa da regulamentação da disposição consagrada no artigo 65º da CRP. Refere-se, pela sua importância, a Lei de Bases da Habitação (Lei nº 83/2019, de 3 de setembro), que poderá ser considerada como o corolário deste processo, configurando, pelo menos aparentemente, uma significativa alteração na postura do Estado relativamente ao problema do acesso de todos os cidadãos a uma habitação condigna.

Todos os diplomas citados atribuem, expressamente, responsabilidades concretas aos municípios no que respeita à conceção e execução de programas de ação que conduzam à satisfação do comando constitucional que obriga a uma habitação condigna para todos. Não há como fugir desta realidade!

É precisamente confrontada com a nova realidade legislativa a partir de 2018 – que não existia antes de 2018, importa sublinhar de novo! –, que no início de julho de 2021, a dois meses das eleições autárquicas, o PS fez aprovar em Almada uma revisão da sua Estratégia Local de Habitação (ELH), aprovada em versão inicial em 2019, para o período de 2021 a 2026, coincidente com o período de execução do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR). 

Em traços gerais, essa revisão da Estratégia Local prevê, para aquele período de seis anos, a construção de 1006 fogos, num investimento total 132,3 milhões de euros, a reabilitação de 1270 fogos do atual parque habitacional do município, num investimento total de 38,4 milhões de euros, e despesas de urbanização num montante de 18 milhões de euros. 

Não nos preocupando agora uma avaliação da capacidade de execução (ou falta dela…) deste ambicioso programa, o mais importante é perceber que toda esta enorme “declaração de interesse” apenas existiu, e existe, porque a Câmara Municipal de Almada, assumiu e assume responsabilidades no domínio da habitação! Caso contrário, por que razão estabeleceria a maioria PS metas tão ambiciosas neste domínio? Ninguém entenderia…

Regressemos, então, à chocante posição assumida pela Câmara Municipal relativamente à situação das famílias instaladas de forma precária em Penajoia.

Desde o comunicado oficial, em que a Câmara Municipal se “regozija” pelo facto do IHRU ter feito publicar editais em que determina a desocupação do território de que é proprietário, ignorando ostensivamente que ali se encontram seres humanos como todos nós, que merecem por esse simples facto, mas também pelas leis vigentes em Portugal – a começar pela Lei Fundamental do país –, o máximo respeito e a máxima consideração, até às infelizes, e queremos acreditar imponderadas, declarações da Vereadora Francisca Parreira, que em nome da maioria no executivo municipal, procura justificar a postura de autoexclusão relativamente à responsabilidade pela solução do problema criado em Penajoia, já assistimos a um pouco de tudo por parte do município de Almada, numa atitude que não pode deixar de suscitar uma profunda indignação e uma justa e acérrima crítica.

Esta posição da Vereadora e da Câmara Municipal de Almada é tanto mais incompreensível, quanto a mesma maioria, a mesma Vereadora e a mesma Presidente da Câmara Municipal, não se cansam de acusar as anteriores administrações da Câmara Municipal de Almada, da responsabilidade da CDU, de nada terem feito relativamente ao problema da habitação.

Para além da falsidade desta alegação, facilmente desmentida pela realidade dos factos no que ao parque habitacional do município diz respeito – mais de 80% desse parque foi construído pela gestão municipal da CDU, como a própria Estratégia Local de Habitação de 2019 e 2021 (mandada elaborar pela maioria PS) indubitavelmente reconhece! –, esta posição representa uma postura incompreensivelmente dual, já que tão depressa acusam os seus adversários políticos de nada terem feito quando foram poder – mesmo sabendo que esses adversários não tiveram, então, nem meios nem responsabilidades formais para o fazer, e ainda assim fizeram! –, como se recusam agora a assumir a ação e a responsabilidade, sabendo, em contrapartida, que dispõem de meios e de responsabilidade formal para o fazer. 

Não restam dúvidas de que a Câmara Municipal de Almada tem as competências e tem as responsabilidades para participar ativamente, até mesmo para conduzir este processo – que ocorre no seu território, é bom não esquecer –, no sentido de encontrar as respostas e as soluções de habitação adequadas para as mais de centena e meia de famílias que se encontram, neste momento, instaladas em Penajoia.

O que se exige à Câmara Municipal de Almada, perante esta situação de efetiva emergência social vivida em Penajoia – e exige-se com um absoluto carácter de urgência! –, é a revisão e atualização da ELH, em particular no que respeita ao levantamento das necessidades atuais e do desenho das respostas e soluções adequadas a essas necessidades reias, e a consequente planificação e afetação de recursos humanos e financeiros para resposta ao problema. 

É a este procedimento que está obrigado o município de Almada. A ELH não é estática. Tem obrigatoriamente de reagir e adaptar-se à realidade social e económica de cada momento, e às condições materiais de vida das populações. 

A ELH é uma ferramenta para a resolução de um problema: e esse problema é a carência de habitação e a existência de um número considerável de pessoas que vive em condições consideradas indignas, que resultam, no essencial, do facto do rendimento dos trabalhadores, reformados e pensionistas ser tão baixo, que não lhes permite aspirar à aquisição ou ao arrendamento de uma habitação condigna aos cinicamente considerados “valores de mercado”.

Não é compreensível, menos ainda aceitável, que a Câmara Municipal de Almada pretenda ignora – na verdade trata-se, mesmo, de discriminação –, mais de três centenas de munícipes do seu próprio concelho. 

O que está em causa em Penajoia são famílias de trabalhadores de Almada, que têm os seus filhos a frequentar a escola em Almada, que dinamizam a atividade económica do concelho, comprando os bens de que necessitam em Almada. São famílias que contribuem para a criação da riqueza local. É esta dimensão social que deve, em primeira instância, ser o objeto, ser o foco e ser o fundamento da ação do Estado. Logo, da ação do IHRU e da Câmara Municipal de Almada.

O PS e a sua maioria em Almada, não podem eximir-se a estas responsabilidades. Tentar fazê-lo, como tem acontecido nos últimos tempos, procurar iludir a realidade recusando o exercício das evidentes responsabilidade e competências do município, traduz uma postura que não pode ser interpretada senão como a expressão de uma confrangedora insensibilidade e desumanidade, para além de uma enorme irresponsabilidade política. 

Uma postura, em todos os casos, inaceitável e intolerável quando nos confrontamos com um problema de enorme magnitude, que afeta os direitos humanos não apenas do amplo conjunto de pessoas – crianças, jovens, adultos e idosos –, diretamente afetadas pela situação criada em Penajoia, mas os direitos humanos de todos nós, cidadãos que vivemos em Portugal.

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