A crise da habitação em Almada: raízes e soluções
Com o preço médio por metro quadrado a triplicar nos últimos 10 anos, constrangimentos persistentes do lado da oferta e uma conjuntura geopolítica internacional pouco favorável, devemos encarar o problema com realismo: as perspetivas na compra ou arrendamento de casa própria em Portugal, e especialmente no nosso concelho, não são positivas daqui para a frente. O que pode então ser feito?
Portugal é, neste preciso momento, o país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) onde é mais difícil um cidadão comprar casa, ao apresentar valores lamentáveis para o rácio entre os preços residenciais e os rendimentos, com o índice de preços da habitação a atingir máximos históricos enquanto o salário médio não acompanhou, nem de longe, o aumento do custo de vida. A economia portuguesa tem muitos defeitos, mas creio ser consensual que a crise habitacional é atualmente o maior problema que assola as famílias, e particularmente os jovens, que veem o seu futuro congelado por não encontrarem oportunidades profissionais que lhes ofereçam as condições necessárias e suficientes.
A isto acresce toda uma situação internacional desfavorável, onde a escalada de tensões geopolíticas e a incerteza sobre a guerra comercial iniciada pelos Estados Unidos pode arruinar o caminho traçado desde 2022 pelos principais bancos centrais no combate à inflação. Num cenário muito pessimista, se os preços tanto das casas como dos bens e serviços subirem sem precedentes, veremos uma severa degradação do poder de compra, que sem prevenção antecipada resultará no colapso da nossa economia, apesar do desemprego e dívida pública terem seguido trajetórias positivas.
A saturação imobiliária é sentida pelo país, sendo Almada um dos concelhos mais afetados, onde o preço médio das casas à venda por metro quadrado (m2) praticamente triplicou num espaço temporal de 10 anos, entre 2015 e 2025, de acordo com o Idealista.

É importante referir que algumas medidas governamentais tomadas nos últimos anos, que facilitaram o descontrolo na imigração, também tiveram um papel nesta crise, com a proporção de imigrantes na população residente a subir de cerca de 0.2% em 2013 para 1.8% em 2023, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Ao mesmo tempo, Almada foi um dos concelhos onde a população total mais cresceu nas últimas duas décadas (de 165 667 habitantes em 2003 para 181 232 em 2023), em meio ao aumento significativo de uma procura por habitação que visava encontrar valores consideravelmente mais acessíveis.
As consequências do aumento do custo de vida e dos entraves ao pleno crescimento do salário médio são sobretudo visíveis no nosso concelho, com os jovens a sair de casa dos pais cada vez mais tarde e o agravamento dos desafios de índole social já enfrentados pela autarquia há décadas, nomeadamente os bairros de habitação precária ou barracas. Um exemplo merece especial destaque: o Bairro de Penajóia, próximo à ponte 25 de Abril, que há cerca de dois anos não existia.
Numa entrevista ao jornal Eco, a Presidente da Câmara de Almada alertou para este problema, criticando a ineficiência e perdas de tempo a finalizar e a adaptar programas, tal como a falta de resposta por parte do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). Inês de Medeiros observa a Penajóia com um “gosto amargo”, tendo em conta outros casos semelhantes já enfrentados, como o Segundo Torrão e as Terras do Lelo.
São claras as evidências de que se a crise da habitação não for resolvida pelo menos a curto-médio prazo, acabará por degradar a longo prazo a qualidade de vida dos cidadãos a um nível de retrocesso em termos de desenvolvimento humano, com o poder de compra a baixar para níveis verificados apenas voltando atrás várias décadas no passado. Em Almada e noutros municípios da margem sul, a crise da habitação junta-se a outros desafios, destacando os limites na acessibilidade a Lisboa, como os congestionamentos na ponte 25 de Abril e o caos nos transportes públicos, que esperamos sejam aliviados com a construção do túnel imerso entre Algés e a Trafaria.
Precisamos então de pensar como travar de forma eficaz a bolha imobiliária e voltar a oferecer condições de vida dignas à população. A melhor maneira é começar por entender as principais razões que nos levaram ao ponto em que estamos, e é possível identificar quatro fatores-chave que criaram este problema crónico.
O primeiro e mais abordado é o excesso da procura, que ocorre tanto por via da imigração como pela atratividade da margem sul como local para viver em substituição dos municípios da margem norte. Não é expectável que este fenómeno seja revertido num futuro próximo, com a queda das taxas de juro, a consequente redução dos custos de financiamento, um mercado de trabalho resiliente e as garantias públicas para jovens.
O segundo vem em sequência: o aumento insuficiente da oferta, que não satisfaz a procura excessiva. De acordo com o INE, o número de novos edifícios para habitação familiar concluídos subiu em Almada, face aos níveis do período daTroika e da crise das dívidas soberanas, porém ainda se encontra bastante abaixo do que se verificava no início do século. Além disso, a criação de novos edifícios em Lisboa tem se desmaterializado, resultando numa pressão acrescida para o nosso concelho.

O terceiro consiste na forte rigidez da procura de residência (o principal subsetor do mercado imobiliário), visto que, seja caro ou barato, as pessoas vão sempre precisar de um lugar para viver, ficando expostas a um fosso crescente entre o poder negocial dos proprietários e o seu próprio poder negocial. O último fator-chave é o fortalecimento do nicho do luxo, com o número de milionários estrangeiros a vir morar para Portugal a crescer e vários proprietários a voltarem-se para este segmento, em resultado do menor risco potencial em termos de pagamentos e margens de lucro mais atrativas.
Para definir estratégias duradouras no combate aos efeitos negativos da especulação imobiliária, é necessário que tanto o poder autárquico como a Administração Central se coordenem na criação de planos de ação, tendo em conta os recursos disponíveis e as características territoriais, sociais e económicas dos municípios. Muito já tem sido feito em Almada, nomeadamente no que toca às medidas de reabilitação e realojamento e o aproveitamento das verbas do PRR, porém a demora nos processos, falhas de comunicação e elevada burocracia têm limitado o alcance a todos os problemas.
Na verdade, o Estado até tem beneficiado de certa forma com esta bolha. Tentem fazer o exercício de adivinhar o setor que mais tem contribuído para o aumento percentual da receita arrecadada de impostos indiretos em Portugal. Exatamente, o setor imobiliário, com o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) a providenciar mais 371% de receitas públicas em 2023 face a 2013. Para colocar as coisas em perspetiva, nenhum outro imposto indireto subiu tanto em termos percentuais de receita arrecadada no mesmo período, apresentando todos uma variação nunca superior a 100%. A tripla tributação nas transações de imóveis (IMI, IMT e imposto de selo) tem esvaziado os bolsos dos portugueses.

O travão passa pelo setor público mitigar os efeitos dos fatores-chave identificados anteriormente. No caso da procura excessiva, não há muito a fazer, visto que o Estado não consegue controlar as dinâmicas dos consumidores e investidores. A melhor vertente de atuação do lado da procura é criar mecanismos para atenuar a especulação no nicho do luxo e para perpetuar as medidas de apoio aos jovens, nomeadamente o IRS jovem, a isenção de IMT e as garantias públicas. É necessária também uma melhor regulação, fiscalizando propriedades que não sejam utilizadas durante períodos longos e limitando os alojamentos locais.
No que respeita a oferta, o Estado já tem mais margem de manobra. Ao reabilitar edifícios públicos e continuando as políticas de construção, aquisição e arrendamento a preços acessíveis, consegue barrar o aumento do poder de mercado dos privados. É importante conciliar estas políticas com soluções para dois defeitos da atuação pública: acabar com a elevada burocracia e falhas de comunicação entre os poderes locais e central, e realizar uma profunda reforma fiscal, reduzindo a incidência do IMT e situações de dupla ou tripla tributação.
Outras medidas envolvem o reforço das parcerias público-privadas e a criação de incentivos fiscais para os proprietários disponibilizarem casas a preços mais baixos do que fariam noutras circunstâncias, mas a fórmula para resolver esta crise passa, resumidamente, pelo combate à especulação descontrolada, pela continuidade dos estímulos à oferta acessível, pelo apoio aos jovens e pelo aumento da eficiência na comunicação e implementação de políticas públicas.
Almada Online, Crónica, Economia, Finanças, Opinião, Tiago Pereira