Barragem contra o Pacífico
No momento em que escrevo, lembro-me da confissão de uma leitora compulsiva, que, aliás, veio a fazer desse gosto a sua vida profissional, como editora de livros, a poeta e letrista Maria do Rosário Pedreira. Para ela, que sempre leu muito desde menina, lia indiscriminadamente livros, ditos “regulares”, a grande viragem para a grande Literatura deu-se com o fascínio da escrita de Marguerite Duras, quando leu “Uma barragem contra o Pacífico”, em estilo único; bem como os temas abordados da condição humana, da violência das relações, do feminismo, do racismo, da exploração sob a forma de corrupção.
Começo por saudar Almada, que pela sua Companhia de Teatro (CTA) leva pela primeira vez à cena nos palcos portugueses “Uma barragem contra o Pacífico”, de Marguerite Duras, na versão cénica de Geneviève Serreau, publicada na Revista L’ Avant – Scène (Jan 1960), na tradução de Lúcia Liba Mucznik. Não que a Companhia não tivesse já representado Duras — recordo “Dias inteiros nas árvores”, com encenação de Joaquim Benite, e La Musica II, numa encenação de Rogério de Carvalho, respectivamente nos anos 91 e 92 — mas esta é efectivamente uma estreia absoluta.
Na noite de 14 de Março saudei Álvaro Correia, pela encenação da peça, que então me disse ter sido tocado pela escrita de Duras nos finais da sua adolescência, quando leu “Moderato Cantabile”, “O amante” ou “O vice-cônsul”, e que a actual volta ao seu universo, trabalhando-a, permitiu-lhe um olhar mais profundo sobre a sua peculiar obra.
No momento em que escrevo, lembro-me da confissão de uma leitora compulsiva, que, aliás, veio a fazer desse gosto a sua vida profissional, como editora de livros, a poeta e letrista Maria do Rosário Pedreira. Para ela, que sempre leu muito desde menina, lia indiscriminadamente livros, ditos “regulares”, a grande viragem para a grande Literatura deu-se com o fascínio da escrita de Marguerite Duras, quando leu “Uma barragem contra o Pacífico”, em estilo único; bem como os temas abordados da condição humana, da violência das relações, do feminismo, do racismo, da exploração sob a forma de corrupção.
O terreno do romance é autobiográfico, sabemos. Aliás, nunca Duras separou a vida da literatura. Nascida na Indochina francesa, em 1914, os pais professores, ambos seduzidos pela aventura colonial. Se os primeiros anos foram felizes, com a morte do pai, a mãe, para sustento dos filhos, é obrigada a empregar-se como pianista no Éden-Cinema. Com as poupanças de dez anos, investe na compra de terrenos no Cambodja que julga cultiváveis, mas fora enganada com terrenos pantanosos no pedido de concessão à Direcção-Geral dos Serviços Cadastrais da colónia.
Na CTA a peça começa com a Mãe e os dois filhos, José de 20 anos e Susana de 16, num bungalow isolado junto ao mar, e com a família está um fiel capataz malaio, que aquela contratara há 6 anos na chegada à planície. Vidas de miséria. Anualmente o mar subia e submergia as colheitas, e jamais ela pudera compensar parte das despesas com a construção do bungalow, inacabado, com uma precária cobertura em colmo.
Mas a Mãe teima no seu sonho de tornar a terra fecunda. Idealiza e incita os camponeses de igual vida miserável nas terras limítrofes da concessão a construirem com ela sucessivos diques para suster as investidas do mar. Tarefa inglória. Obtém licença tácita, hipoteca o bungalow e gasta todo o dinheiro obtido na compra de toros de mangueira para escorar as barragens. Mas numa só noite tudo se desmora com a natureza implacável das ondas do Pacífico.
Torna-se detestável, quando finalmente se apercebe do vampirismo colonial. Vai a Kam, à cidade, e denuncia a corrupção que existe entre os próprios colonos, nos dinheiros que metem ao bolso em troca de favores. É odiada e amada ao mesmo tempo pelos filhos, como duas faces da mesma moeda. Não vê senão dinheiro pela falta do mesmo…
Teresa Gafeira, poderosa, domina toda a cena polarizada pela Mãe, e secundada pelos dois filhos, interpretados por Íris Cañamero e João Jesus, Susana na sua aparente fragilidade e a rebeldia vigorosa do amado filho José. A aparição simbólica do colonizador (como símbolo de contraste) é muito bem desenhada pelo fino recorte de M.Jo, no desempenho de David Pereira Bastos, pois que numa aparente simplicidade ele carrega para a cena o mundo sinistro dos colonizadores. O seu figurino é exímio ( Sérgio Loureiro, que assina também a cenografia), ficam-nos nos olhos os “Spectator”, sapatos picotados por entre o branco e o preto.
A encenação conduz a esta polifonia com saber, onde por exemplo no início somos surpreendidos pela presença do criado, um chinês não-actor (Qiming Liu), o que não impede de estar muito bem em palco, presença e linguagem, com rigor e expressividade. Sublinha a atmosfera, situa e acentua o ambiente, num jogo de contrastes, em que de um lado está M. Jo, branco, rico, colonizador e do outro o criado, nativo, subjugado.
E por contraste, lembro a cena de loucura da pobre família, à volta do seu Citroen B.12, a cair de podre, e a limousine de M. Jo. Como não podem competir, entram em hilariante gozo, vangloriando-se da própria miséria, e, em cada frase, exacerbando até à exaustão a decadência do carro que, apesar de tudo, anda. Gafeira é aqui magistral na absurda ironia. Cai extenuada de tanto rir, pois que no meio de tanta desgraça julgara que perdera o riso.
Depois dos presentes que Susana recebera no jogo de sedução com M.Jo, como o formidável gramofone, que só de vê-lo quanto mais pô-lo a tocar, fez o irmão dizer “ele é asqueroso, mas o gramofone é admirável”, uma vez obtido o dinheiro com a sua venda, o foco da Mãe passou a ser o anel de diamante, que não conseguiam vender pelo preço que teimava de vinte mil francos. Este passou a estar anunciado para venda no hotel de Carmen, a amiga de Susana, com quartos alugados à hora. E que um dia diz a Susana que as prostitutas, ela própria filha de uma, eram o que ainda havia de mais honesto, de menos porco, no imenso bordel que era a colónia… (papel fugaz mas marcante de Érica Rodrigues), tal como o de Sr. Barner (João Cabral), novo potencial comprador do diamante, na ideia da amiga que empresta os vestidos sedutores a Susana, para os “passeios” na avenida … ou o também convincente Bruno Duarte Nogueira, cuja personagem não retira a Susana, apesar do envolvimento sensual, o domínio da sua vida.
A Mãe não resiste à partida do filho, já nada lhe interessa. O filho que afrontava com espingarda e sarcasmo o agente cadastral que vinha inspecionar as concessões da planície, fazendo-o recuar de medo. De qualquer forma, não sobra nada, nem já a obsessão do anel, quando ela experimenta o desgosto de ver o filho partir e a premonição de que a filha um dia também partirá. A Mãe morre. E é só aí, depois da dor da perda, que os filhos conseguem, na realidade, partir.
Em contraluz, resta-nos a imagem do bungalow, uma engenhosa construção de madeira que nos remete para a atmosfera tropical (belo postal ilustrado), onde se gostaria de viver. Mas onde está a devastação? Talvez nas cenas de transição (com a luz de Guilherme Frazão), quando dos laterais da cena sobressaem árvores secas em contraste com as verdejantes reproduzidas nas paredes da casa.
Triste e muito bonita a cena final da peça, quando vemos os vultos das personagens, de costas, num adeus ao sonho. O Sonho da Mãe que se esfuma, de todo fora da realidade, com a ideia de que conseguiria alguma vez poder criar, plantar e ver crescer algo que semeasse.
Guardo essa comoção e aqui estou presa a uma velha edição da obra com páginas amarelecidas – 1a edição, 1964, da Editorial Minerva. E ainda acompanhada do original em francês “Un barrage contre le Pacifique”, Éditions Gallimard. Col. Folio.
Entramos em ABRIL. No próximo dia 4 é a data de nascimento de Marguerite Duras, cumpriria 111 anos. Uma feliz noite de ida ao Teatro Municipal Joaquim Benite. De qualquer modo, o espectáculo termina no dia 6, domingo.
[Nota da redacção: O Almada Online tem a decorrer um passatempo com oferta de bilhetes para as duas últimas sessões de “Uma barragem contra o Pacífico”. Saiba como participar aqui.]
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