Do que é que nos lembramos?
Edward Munch dizia: Não pinto aquilo que vejo, mas sim aquilo que vi. É importante recordar…
Do que é que os espectadores se lembram quando um espectáculo acaba? Muito poucos se lembram daquilo que dizem. Aquilo de que nos lembramos é aquilo que vemos. São interrogações e conclusão de Juni Dahr, a actriz e encenadora norueguesa, cujo trabalho conheci em Almada, num Festival de Teatro. Na verdade, digo eu, há espectáculos que não esquecemos, imagens que afloram, gestos, marcações, silêncios, imobilidade.

Agora, que apenas falta um mês para o Festival de Teatro de Almada começar, lembro o intérprete de “Monóculo, Retrato de S. Von Harden” e penso quão bem ficaria no programa. Trata-se de um monólogo baseado na pintura de Otto Dix, o pintor alemão nascido em 1891, cofundador do movimento artístico Nova Objectividade. Escrito por Stéphane Ghislain Roussel, multifacetado artista belga-luxemburguês, violinista, musicólogo, curador de exposições, dramaturgo e encenador, cuja inspiração para esta primeira peça (2010) foi a do quadro que vira em Berlim, quando se preparava para escrever um livro sobre História de Arte, ideia que abandonou tal o fascínio que lhe provocara a figura retratada de Sylvia Von Harden, escritora e jornalista, natural de Hamburgo (1894), um ícone da emancipação feminina, desafiadora da identidade de género, na década de 1920.
Cabelo curto, monóculo, cigarro na mão, Cristóvão Campos, o ainda jovem actor residente em Almada , mas de vastos desempenhos, tem uma performance impactante no desenho da personagem que é a figura andrógina retratada pelo pintor. Atrevo-me a dizer que é ele o espectáculo que vi no Teatro Aberto, com dramaturgia de Vera San Payo Lemos, encenado por Rui Neto, o qual desde logo se aplaude pela escolha do intérprete.
Poderemos então dizer que é ele o próprio quadro, aliás, em considerável tempo imóvel, como se realmente estivesse a ser pintado, segundo as ordens do pintor (que não é visto), nas sucessivas sessões de pintura no atelier, pois que a peça é toda ela um monólogo, uma só voz e um só corpo, para nos transmitir a intelectual, mulher provocadora, mordaz, insubmissa, desafiadora, frágil até. E como lembro as expressões do seu rosto, e as mãos do actor, dos dedos que apertam o cigarro, do traçar esguio das pernas, para não falar do requinte do andar e do súbito escorregar numa queda de costas, impressionante de tão natural. Enfim, em nada o actor cede a uma caricatura, com ele tem psique a figura e o rosto da “nova mulher alemã” da década de 1920. Realidade histórica que ressoa forte na actualidade, entre nós e no contexto europeu, pela identidade de género, a liberdade e a inclusão.

E eis que, ao lembrar o virtuosismo de Cristóvão Campos no papel que encarna da figura histórica feminina imortalizada pelo pintor Otto Dix, me assalta por contraste a interpretação de outro actor de Almada na personagem principal em The Pillowman, de Mc Donagh, pelo cruel desumano apagamento do seu rosto tanto quanto os acontecimentos obrigam à transformação da personagem.
Posso imaginar com que bravura o formidável actor João Tempera abraçou a sua personagem, a sua transformação através de trágicos acontecimentos. Ele que é homem de livros, co-criador até de uma Biblioteca ambulante na sua cidade, Almada.
É belo e aquece o coração (escrevi na altura) aquele momento final em que torturado, assassinado, se levanta e já na outra margem… o seu rosto, poderoso, se ilumina para nos revelar que a sua obra escrita foi, afinal, salva. E erguendo-se, ergue o Livro e lê. Em boa hora o Teatro da Terra, no Seixal, o acolheu e aos seus pares nesta tão extraordinária peça encenada por Miguel Sopas, que não pode ser diferida, terá ainda de ser vista noutros palcos.
Resta-me a expectativa de um destes espectáculos poder constar do Festival. Quem sabe os dois?
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