O 25 de abril numa história de séculos
O 25 de abril (escusado dizer de 1974) foi há 51 anos. Creio que desde o próprio dia todos ficaram com a certeza de que era uma das datas fundamentais da História de Portugal. As mudanças eram grandes. Acabavam 48 anos de opressão, acabava também uma guerra que durava há 13 anos, era uma nova época. Muito se tem escrito sobre essa mudança, mas será altura de ver o que significou a longo prazo na História de Portugal.
O tempo da vida humana é um tempo natural para a história, o que não exclui tempos mais curtos e tempos mais longos. Há cerca de 100 anos a velha história positivista e centrada no acontecimento foi sendo substituída por uma história que dava mais importância à economia, à sociedade e às mentalidades. Menos que os acontecimentos, importavam as estruturas que muitas vezes têm tempos de mudança mais longos. É neste contexto que surgem obras como as de Fernand Braudel sobre o Mediterrâneo na Antiguidade e na época de Filipe II.
Tendo passado meio século sobre as mudanças provocadas pelo 25 de abril, algumas evidentes desde o primeiro momento, outras só compreensíveis a medio prazo, é altura de pensar esta transformação no contexto mais alargado da História de Portugal ao longo de quase um milénio.
As datas 1143, 1383/85, 1578/80, 1640, 1820/34, 1910, 1926, são vistas como os principais momentos de mudança em Portugal, mas para iniciar esta caminhada proponho um outro. O império, fundamental na História de Portugal, inicia-se com a Conquista de Ceuta em 1415. Até aí Portugal era um pequeno reino periférico na Europa, sem grande intervenção em assuntos europeus e a quem, nem a posição de caminho entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa dava importância. Entre conquistas e descobrimentos é um início de império que se alarga às ilhas atlânticas, às navegações e comércio com a costa africana, culminado com a chegada à India e Brasil. Apesar de ter uma base territorial escassa, não há domínio sobre grandes territórios africanos, nem na Índia, nem no Brasil, é o império do século XVI que é visto como o “grande império”. Teria naufragado em Alcácer Quibir e depois com os Filipes, mas, de facto, a crise já estava instalada desde os anos 1550, com a entrada de novos concorrentes europeus e a recomposição de poderes a Oriente. Porém 1578/80, ou seja, derrota de Alcácer Quibir, e o subsequente domínio filipino, são vistos como o fim da época dourada e o início da decadência. Marcam, embora não de imediato, o fim do império do Oriente, embora deste ficassem restos. Também é nesta época que surge o Sebastianismo, crença no regresso do jovem rei malogrado em Alcácer-Quibir, mas que se manteve no acreditar num destino místico do país e na sua miraculosa regeneração, por via de alguma personagem milagrosa.
Desde o século XVII, até às revoluções liberais, e à independência do Brasil, o Império é, sobretudo a América do Sul. Aqui há domínio territorial, uma exploração continuada muito baseada na escravatura e no massacre dos índios. Mesmo independente, durante todo o século XIX, o Brasil continua a ser o novo Eldorado. A independência do Brasil está, inevitavelmente ligada às revoluções liberais e à entrada de Portugal na contemporaneidade. É um processo de décadas que começa na primeira Invasão Francesa e fuga da família real para o Brasil e se completa com as reformas liberais de 1834 (algumas como a abolição total da escravatura, só se fizeram décadas depois).
A implantação da República parece ser a exceção na ligação entre as grandes mudanças do país e as alterações na configuração do Império. De facto, não há uma alteração imediata, mas a Revolução Republicana surge nas ondas de choque do Ultimatum de 1890 e da viragem para África. O Hino Nacional, A Portuguesa, é, em si, um resumo das questões imperiais e da ideia de decadência que tomou forma no século XVI e ganhou enorme força em finais do século XIX.
A ditadura no seu fim tinha uma enorme ligação às colónias, pode parecer estranho que o golpe (28 de maio de 1926) que a instaurou não as tivesse nas suas prioridades. Só em meados dos anos 30 se tornam centrais no discurso, e só após a 2ª Guerra mundial há uma movimentação importante de população para África.
Tal como as datas referidas anteriormente, o 25 de abril é uma das grandes viragens da História de Portugal. Pensando no longo prazo, a mudança mais importante é o fim do Império. Portugal detinha, além de territórios mais pequenos, Angola e Moçambique, com perto de 20 vezes a extensão do seu território europeu. A sua população também era superior, porém hoje, com uma população portuguesa a crescer lentamente e a população africana com um crescimento rápido, o desequilíbrio é muito maior.
Estamos habituados a ver o 25 de abril no contexto do século XX, do final da ditadura, do fim dos impérios coloniais no pós-guerra. Mas é uma viragem fundamental para um país que desde 1415, tinha um império colonial, sendo este uma constante e até (em alguns momentos) o centro da vida nacional. É uma mudança profundíssima, não só para os que voltaram de África para Portugal (e foram centenas de milhar), como para todo o país. Sublinhe-se que foi uma mudança para a qual o país não estava preparado. De facto, até ao aparecimento de movimentos de libertação, nem governo, nem oposição colocavam a hipótese de independência. Norton de Matos, candidato da oposição em 1948, propunha a mudança da capital para Angola. O “Portugal e o Futuro” de António de Spínola anuncia o 25 de abril, mas ainda não aponta para a independência das colónias.
O fim do Império, mesmo quando era evidente que era inevitável, foi um processo traumático, não só para os que tiveram de voltar de África. Porém não foi essa a única grande mudança. Indo a outro D do programa do MFA, Portugal democratizou-se, pela primeira vez instaurou-se o voto direto e universal.
A democratização não foi um processo pacifico. No MFA havia projetos diferentes, de uma ténue democratização, a uma democracia de modelo ocidental, e mesmo a várias formas de sociedade sem classes, todos convergiram no 25 de abril, mas rapidamente divergiram. Além disso, e mais importante, o próprio dia 25 de abril marcou a passagem de um golpe militar a revolução e, não só se conquistaram direitos cívicos, democráticos e laborais, como se iniciaram processos inéditos na Europa das últimas décadas, por exemplo a reforma agrária. Sobretudo as pessoas entenderam que tinham o poder (ideia que parece ter-se perdido). Educação, saúde, infraestruturas deram saltos extraordinários, no outro D (desenvolvimento) do MFA. Neste D falhou uma enorme expansão económica que muitos esperariam e continuamos centrados nos baixos salários.
O E de Europa não fazia parte do programa do MFA, mas também aconteceu. Nem nas épocas que hoje vemos com Portugal sendo uma “grande potência”, Portugal teve intervenção no espaço europeu. Catarina de Aragão era tia de D. João III, mas não há notícia da sua intervenção no conflito que levou ao fim do seu casamento com Henrique VIII e a separação da Inglaterra da Igreja de Roma.
Em vez do orgulhosamente sós da ditadura, Portugal é hoje um país integrado e com uma voz na Europa. A viragem para o mar e o império foi, também, uma consequência da marginalidade no espaço europeu, o fim do império determinou uma viragem para a Europa. Portugal descobria a Europa, mas a Europa também descobria Portugal.
O trauma do fim do Império após o 25 de abril explica uma certa visão de decadência de Portugal no pos-25 de abril. É um paradoxo que só esse trauma pode explicar, que num país em que há 50 anos havia epidemias de cólera, em que menos de 1 em cada 10 jovens estudava, onde a corrupção era o modo de vida, e que hoje tem na saúde, na educação indicadores entre os melhores do mundo, possa haver que ache que seja decadente, ou que tenha sido destruído. Provavelmente os maiores feitos da História de Portugal estão nestes 50 anos e não numa passada “época dourada”.
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