Queda do governo bloqueia projetos estruturais para Almada

A recente demissão do Governo, precipitada por polémicas estéreis de foro pessoal e familiar, deixou o país mergulhado numa crise política evitável. Em vez de debates sobre políticas públicas, assistiu-se a um foco desproporcionado em alegações contra o Primeiro-Ministro e o seu círculo próximo. O resultado foi a queda de um executivo que, apesar de efémero, estava empenhado em medidas importantes para o país.

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Importa referir que as suspeitas invocadas para derrubar o Governo acabaram por não ter fundamento sólido – o próprio Ministério Público reconheceu não ter fundamento para a abertura de qualquer inquérito de natureza criminal. Ou seja, destruiu-se a estabilidade governativa com base numa perseguição pessoal que pouco tinha a ver com o interesse público.

Já é habitual ver o Partido Socialista (PS) e o Chega unidos, e neste caso, mais uma vez, ambos contribuíram para o desfecho. O PS, principal partido da oposição, não hesitou em explorar politicamente as insinuações que recaíram sobre o Primeiro-Ministro, colocando a ambição de enfraquecer o adversário acima da estabilidade do país. Também o Chega rapidamente transformou essas questões pessoais em arma de arremesso, apostando na desestabilização para benefício próprio. Em suma, oposição de esquerda e direita radical convergiram numa espécie de vendeta pessoal, privilegiando o ataque ad hominem em vez da discussão de ideias. Esta convergência insólita mas comum, movida por cálculos políticos e animosidade pessoal, derrubou um Governo legítimo e deixou projetos vitais em suspenso.

Entre os projetos estruturantes agora ameaçados destacam-se os investimentos em mobilidade no concelho de Almada. Um deles é a expansão do Metro Sul do Tejo (MTS) até à Costa da Caparica e Trafaria, uma ligação aguardada há décadas. O plano prevê um prolongamento de 7 quilómetros da Linha 3 do MTS, acrescentando 10 novas estações entre a Universidade e a Trafaria. Esta expansão criará interfaces de transporte importantes – uma estação central na Costa da Caparica e um terminal intermodal na Trafaria – integrando o metro ligeiro com autocarros, barcos e até com o futuro Transpraia. Trata-se de uma aposta na mobilidade sustentável e na redução do tráfego automóvel, em linha com as metas ambientais europeias. O projeto já estava em marcha, com estudos prévios em curso e financiamento estatal assegurado até 2029 para viabilizar a obra. Com a crise política, teme-se agora que prazos e financiamento fiquem comprometidos, perdendo-se o ímpeto numa obra cuja conclusão melhoraria significativamente o quotidiano de milhares de almadenses.

Em paralelo, havia avanços no ambicioso Túnel Trafaria-Algés, uma nova travessia subaquática do Tejo planeada a oeste da Ponte 25 de Abril. Este túnel rodoviário, há muito reivindicado pelos autarcas de Almada e Oeiras, permitiria ligar a A33 (Margem Sul) à CRIL em Algés (Lisboa). O objetivo é descongestionar a Ponte 25 de Abril, dado que 80% do tráfego daquela ponte se origina em Almada e Seixal e 37% dos veículos têm como destino Oeiras, Cascais ou Sintra. A nova ligação reduziria tempos de deslocação para quem vive na Margem Sul e trabalha na periferia ocidental de Lisboa, além de abrir a possibilidade de extensão do próprio MTS à rede de transportes de Lisboa. De facto, o plano contempla até a inclusão de carris para o metro de superfície dentro do túnel, permitindo que o elétrico de Almada chegue à margem norte. Com um custo estimado de 1,1 mil milhões de euros e previsão para 2032, esta obra estava identificada como prioritária pelo Governo. A sua viabilidade, porém, depende de continuidade política: atrasos ou recuos nesta fase crítica de estudos e montagem financeira poderão adiar indefinidamente uma solução que Almada e toda a Área Metropolitana aguardam há anos.

Outra área em risco é a habitação acessível, onde o Governo demitido tinha lançado iniciativas sem precedentes nas últimas décadas. Em Almada, foi posto em marcha o Plano Integrado de Almada (PIA), um programa apoiado por fundos do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) para construir habitação a custos controlados. Com a instabilidade governativa, surge a incerteza sobre a continuidade deste esforço. Os concursos, obras e financiamentos em curso podem sofrer atrasos se o próximo Governo não eleger a habitação pública como prioridade absoluta.

Num concelho onde milhares de pessoas esperam por uma solução de habitação digna, a interrupção destas políticas tem consequências reais – significa adiar o acesso dessas famílias a uma casa e travar o aumento tão necessário do parque público de arrendamento.

É fundamental que o impulso dado não se perca: o património construído e reabilitado ao abrigo do PRR tem prazos a cumprir e uma eventual descontinuidade política pode comprometer metas ou mesmo financiamento europeu. Continuar este plano não é questão de cor partidária, mas de responsabilidade social para com a população de Almada.

Para além dos projetos locais, há projetos de âmbito regional, diretamente ligados a Almada e à Margem Sul, que ficam envoltos em dúvida. O primeiro é o eterno dossiê do Novo Aeroporto de Lisboa. Passados mais de 50 anos de indecisões, uma Comissão Técnica Independente concluiu em 2023 que a melhor localização é o Campo de Tiro de Alcochete, na Margem Sul. O Governo demitido de António Costa sinalizara concordância com este desfecho, e o Governo agora caído acabou por confirmar formalmente essa decisão em maio de 2024, aprovando o desenvolvimento do novo aeroporto de Lisboa em Alcochete para substituir totalmente o atual Aeroporto Humberto Delgado. Foi inclusive anunciado que o futuro aeroporto se chamará Aeroporto Luís de Camões​. Esta decisão, a par da expansão das ligações de transporte necessárias, entusiasmou a região de Setúbal​, já que promete investimentos significativos, criação de empregos e melhores acessibilidades para a Margem Sul. Um aeroporto internacional de raiz na margem sul do Tejo poderá ser um motor de desenvolvimento regional, corrigindo assimetrias históricas.

Contudo, a concretização do aeroporto depende de estabilidade e consenso político continuado. A definição do projeto, o lançamento de obras e a gestão ambiental exigem coordenação entre governos central e local ao longo de vários anos – algo incompatível com paralisias governativas recorrentes. Cada mudança de governo pode significar voltar à estaca zero ou reabrir discussões já encerradas.

Por exemplo, a Terceira Travessia do Tejo (TTT), indispensável para o sucesso do novo aeroporto e para melhorar a mobilidade regional, foi anunciada em conjunto com este – um novo eixo entre Chelas (Lisboa) e o Barreiro, com componentes ferroviária e rodoviária. Este projeto de ponte ligará a rede de transportes da Margem Sul diretamente a Lisboa, permitindo nomeadamente a passagem de comboios de alta velocidade e de suburbanos. O Governo incumbiu a Infraestruturas de Portugal de concluir os estudos para a construção da TTT e da ligação ferroviária de Alta Velocidade Lisboa-Madrid​, reconhecendo a urgência de integrar Portugal na rede ferroviária europeia. Simultaneamente, foi dada luz verde para avançar com o comboio de alta velocidade entre Lisboa e Porto, outra obra estrutural de que o país carece e que terá impacto na Área Metropolitana de Lisboa (com novos interfaces e redução do tempo de viagem para a capital).

Todos estes projetos regionais encontram-se, pois, numa encruzilhada. Havia finalmente um rumo definido para o aeroporto e para as grandes ligações ferroviárias, algo que exigiu coragem política para decidir. O revés governativo, porém, arrisca atrasar calendários e semear desconfiança junto de investidores e parceiros internacionais.

Almada e concelhos vizinhos da Margem Sul têm muito a ganhar com a concretização destas infraestruturas – em conectividade, oportunidades económicas e qualidade de vida – mas têm igualmente muito a perder se o impasse político as protelar indefinidamente. Cada adiamento representa mais tempo com o aeroporto da Portela saturado, com filas na ponte e com a região sul de Lisboa menos competitiva.

Observando este panorama, fica claro que as consequências da instabilidade política são mais que abstratas – são bem concretas para as populações locais. Em Almada, os benefícios tangíveis de projetos pensados ao longo de anos podem esvair-se se não houver continuidade governativa. A expansão do metro e o novo túnel significam menos trânsito e menos poluição, as casas acessíveis significam fixar jovens casais e dar dignidade habitacional às famílias, o novo aeroporto e a terceira travessia significam emprego e coesão metropolitana. São factos e necessidades objetivas, não meros caprichos de um qualquer governo.

É, portanto, profundamente lamentável que projetos desta envergadura fiquem reféns de lutas político-partidárias e jogos de poder. A queda do Governo, motivada por querelas pessoais em vez de discordâncias programáticas, traduziu-se em tempo perdido para avançar com obras cruciais.

Durante semanas discutiu-se uma empresa familiar gerida pelos filhos do Primeiro-Ministro, quando deveríamos ter discutido o financiamento do metro, o caderno de encargos do aeroporto ou o calendário das novas pontes e linhas férreas. Esta inversão de prioridades cobra agora um preço elevado: a incerteza quanto ao futuro. Entre dissoluções do parlamento, eleições antecipadas e executivos de gestão, quem sofre as consequências são as famílias, que veem adiado o progresso que lhes foi prometido.

Em democracia é saudável escrutinar os governantes, mas quando o escrutínio se transforma em perseguição pessoal e bloqueio sistemático, do sistema quem perde é o país. Almada e Portugal não podem ficar reféns de calculismos políticos de PS e Chega. Urge recentrar o debate no essencial – na execução dos projetos estruturantes que elevam a qualidade de vida e preparam o futuro – e afastar de vez o ruído estéril das questiúnculas pessoais. Só com estabilidade e sentido de Estado será possível retomar o rumo desses grandes projetos. A alternância de poder faz parte das regras do jogo democrático, mas a sabotagem do interesse comum por motivos mesquinhos, porém, não pode ser tolerada. Em nome de Almada e da Margem Sul – e em nome do país –, impõe-se que os responsáveis políticos coloquem os factos e as consequências para as populações acima das trincheiras partidárias. Caso contrário, arriscamo-nos a que a crónica anunciada destes projetos falhados seja, ela sim, a verdadeira derrota de todos.

David Cristóvão

Ex-autarca

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