Um Salazar, dois Salazares, três Salazares

Uma personagem, cuja presença é frequente na televisão, declarou que eram precisos três Salazares para “endireitar isto”. Tal como não vejo o preço certo ou certos programas da manhã e da tarde, não vi a entrevista, é um nível de entretenimento demasiado básico.

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Na afirmação há dois elementos: primeiro é que Portugal (referido de forma deselegante como “isto”) está muito mal e que, com os métodos de Salazar seria possível endireitar.

Vamos então ao que seria necessário endireitar, ou seja os reais problemas. Salários baixos, pobreza, precariedade, habitação, saúde, educação, ambiente, poder-se-ia continuar. Os problemas que Salazar encontrou eram outros, finanças públicas, instabilidade política, agitação social. Estes eram os principais problemas que o Golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 encontrou. Diga-se que resolveu a agitação social com a repressão, quanto a finanças e instabilidade, foi pior a emenda que o soneto. E lá foram chamar o Salazar, homem providencial, primeiro, ministro das finanças, depois primeiro-ministro. Com a oposição calada ou a caminho da prisão, a agitação e a instabilidade resolveram-se, quanto às finanças foi o brutal aumento de impostos e uma austeridade feroz a resolvê-las. É isso que querem? Não creio. 

Diga-se também, que não vejo Salazar, defensor da ordem e dos bons costumes, a aturar a javardice, a má educação e a tentativa de criar o caos, dn partido que agora chama por ele. Esse partido será hoje o maior fator de agitação e instabilidade. 

Ao mesmo tempo correm por aí umas declarações de Mário Soares, em que este diria que Salazar não era fascista. Não me preocupa muito a veracidade das declarações, porém o seu conteúdo é interessante. Ao contrário dos casos clássicos de fascismo e nazismo, Salazar subiu ao poder na sequência de um golpe de estado, não de um movimento de massas. Era pela ordem e não pelo caos, e esse tipo de movimentos não lhe agradava.

Porém nos anos 30, o seu regime veio a criar organizações como a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa, completamente decalcadas da Itália e Alemanha. Pode-se dizer que Marcelo Caetano e Baltazar Rebelo de Sousa (que foram importantes nessas organizações), eram mais fascistas que Salazar, não é, verdadeiramente uma questão. O facto é que Salazar aproveitou e usou a fascização do regime. Mais importante é o ter chefiado durante quase 40 anos uma ditadura que vivia da repressão, polícia politica, presos políticos, medo e um aparelho ideológico que distorcia a memória, o património e a história para os seus fins. Há uma outra diferença. Enquanto Hitler ou Mussolini apostavam no futuro, no progresso, isto por cá era modesto e conservador. Há umas obras de fachada; Técnico, Estádio Nacional, Autoestrada do Estoril, mas pouco mais. 

A mitologia do ditador também o põe a morrer pobre e a ser incorruptível. Como pobre viveu uma boa parte da sua vida num palácio do estado, onde tinha a D. Maria e os ovos das galinhas da D. Maria, Opera, que tanto apreciava, bilhetes oferecidos.  Não era corrupto, a questão é que se comportava como se o país, e em especial o estado, fosse dele.

Porém, o regime era estruturalmente corrupto. A lei do condicionamento industrial, que impedia o aparecimento de novos concorrentes num sector de atividade, sem autorização dos já existentes, e estes eram os grupos económicos afetos ao Estado Novo, corrupção ao mais alto nível que permitia e fomentava os monopólios. Porém a corrupção ia de cima abaixo. Certas vendas para o estado implicavam luvas para os seus responsáveis; num projeto para uma construção, já se sabia onde tinha de pingar; e terminava na simples multa de trânsito que uma nota resolvia. Qual a diferença para os dias de hoje? A censura. Nada se sabia. 

Voltemos à questão do endireitar, mesmo com todos os problemas, não vejo este país como estando especialmente torto. É certo que se anuncia uma greve geral, mas concorde-se ou não, isso faz parte da normalidade e da legitimidade de interesses que se confrontam. É certo que uma das bases ideológicas de Salazar é que não existia esse confronto de interesses e classes, e tudo estava na “União Nacional”, claro que isso era superficial. Há uma dúzia de anos, numa altura em que o primeiro-ministro mandava as pessoas emigrar, os salários tinham cortes em cima de cortes, os impostos aumentavam brutalmente, acompanhados pelo desemprego, então, teria sido uma melhor altura para endireitar. 

Esqueci-me de um pormenor, não assim tão menor, a imigração. Salazar não tinha esse problema, ninguém queria vir para cá. Tinha o problema contrário as pessoas a quererem fugir de Portugal. E faziam-no de forma legal ou ilegal. Iam no Sud-Express, nas camionetas (o avião era caro) ou passavam a fronteira a salto. Raramente tinham um trabalho já contratado, iam tentar a sua sorte, muitas vezes na construção civil, os homens, as mulheres como porteiras ou em trabalho doméstico. A maior parte tinha a quarta classe e não sabia francês, muito menos alemão.

Prefiro viver num país que atrai pessoas, do que num que as afasta, é simples. Sei também que as pessoas emigram procurando uma vida melhor, o que implica encontrar trabalho. Alguns voltarão ao seu país, outros ficarão por cá tentando ter família, trazendo a que já tinham, ou criando laços familiares em Portugal. É o normal, é a vida. Há uma coisa que entendo neste pavor em relação à imigração. Portugal não era mesmo um país para onde se migrasse. Eramos todos monotonamente iguais. A diversidade genética, ditada pela história, abrandava a monotonia, cabelos e olhos escuros, com algumas exceções em que tudo ficava mais claro. Há uns anos começaram a chegar africanos, depois brasileiros e “de Leste”, mas agora há de tudo, de todos os países, alguns até com turbantes e vestes “estranhas”. O país que se gaba de ter dado mundos ao mundo é, afinal, muito fechado e pouco cosmopolita. 

A popularidade destas ideias tem uma explicação. Portugal mudou imenso nos últimos 50 anos. Todos os indicadores fundamentais dizem que foi para melhor, mas nada se faz sem sobressalto. Há sempre a outra face da moeda, há sempre quem fique para trás. A mudança é difícil e fica a saudade do velho mundo. O país da monotonia das roupas e das caras, da lojinha da esquina, da aldeia em que todos se conheciam, pacato, atrasado (e sabendo que o era) morreu. Não será uma obra do 25 de abril, mas coincide no tempo. Salazar ia impedir o Continente e a Zara como fez com a Coca Cola? Acredito que tivesse vontade, mas o poder? O verdadeiro poder está sempre no dinheiro, não há Salazar que o mude.  

Nuno Pinheiro

Doutorado em História Moderna e Contemporânea, Investigador associado do CIES/ ISCTE, almadense

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