Bom senso e razoabilidade, exigências para a transferência de competências para as freguesias

A aproximação dos centros de decisão política aos níveis locais só poderá traduzir efeitos positivos se corresponder a uma efetiva melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados às populações, se estas populações virem beneficiada, de forma concreta e palpável, a sua qualidade de vida. 

Inicio esta colaboração mensal com uma declaração de interesses: a CDU defendeu sempre o desenvolvimento de um processo consistente e coerente de descentralização do poder político em Portugal, mergulhando as raízes desta sua posição política logo no período de 1975/1976, no quadro da elaboração do texto da Constituição da República Portuguesa (CRP), aprovada e promulgada a 2 de abril de 1976.

Colocada desta forma a declaração de interesses inicial, não podem restar quaisquer dúvidas sobre o empenho da CDU, e das forças políticas que a integram, num genuíno processo de transferência de competências dos níveis centrais para os níveis locais do poder político, nos termos e conforme a CRP consagra.

A CDU é mesmo a força política pioneira na prática e consolidação de processos de aproximação dos centros de decisão política às pessoas, prosseguindo desde sempre, em todas as áreas onde detém o poder político, designadamente nos órgãos do Poder Local Democrático (Poder Local Democrático que também deve a sua configuração atual, pluralista, representativa e proporcional, pela intervenção direta dos deputados constituintes da área da atual CDU, no sentido de assegurar a maior representatividade e democraticidade possíveis à eleição destes órgãos), uma política de descentralização efetiva de competências, naturalmente e necessariamente acompanhadas dos adequados e indispensáveis recursos financeiros, físicos e humanos.

Afirmamos por isso com toda a razão e convicção, que queremos, como sempre quisemos, Freguesias melhores e Freguesias mais responsáveis, como comprovam os sucessivos protocolos de delegação de competências celebrados entre a Câmara Municipal e todas as Freguesias do Concelho de Almada – e sublinho TODAS as Freguesias –, ao longo do período de governo CDU no Concelho, que não necessitou de qualquer lei específica – que apenas foi publicada em 2019 – para prosseguir um processo de delegação gradual de competências nas Freguesias, com vantagens indiscutíveis para a gestão municipal, mas sobretudo com inquestionáveis vantagens para a qualidade do serviço público prestado às populações.

Qualquer processo político deve ter um objetivo primordial: a satisfação das necessidades concretas das pessoas e das populações. A CDU sempre afirmou que a proximidade dos centros de decisão política aos problemas reais das pessoas constitui um fator essencial para a sua resolução, mas essa proximidade, por si só, não é a condição suficiente para que esse objetivo seja alcançado.

A aproximação dos centros de decisão política aos níveis locais só poderá traduzir efeitos positivos se corresponder a uma efetiva melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados às populações, se estas populações virem beneficiada, de forma concreta e palpável, a sua qualidade de vida. 

Este objetivo, que deverá presidir a qualquer processo sério de transferência ou delegação de competências das instituições do nível central nas instituições de nível local, exige a observação de uma outra condição básica e essencial: a afetação dos meios e dos recursos necessários e suficientes, de modo a assegurar que a resposta pública aos problemas das pessoas ocorra num patamar mais elevado de qualidade, eficácia e eficiência, salvaguardando os interesses das populações e, obviamente, os direitos dos trabalhadores envolvidos no processo.

Os princípios essenciais, que são requisitos impostos pela legislação em vigor, traduzem a necessidade de observar, no quadro do processo de transferência de competências, para além do princípio da neutralidade da despesa – a execução descentralizada das competências transferidas não pode traduzir um aumento de despesa geral –, também os princípios da igualdade e da não discriminação, da subsidiariedade, da prossecução do interesse público, da continuidade do serviço público, da necessidade e da suficiência de recursos e da boa administração pública.

Infelizmente, aquilo a que assistimos no quadro do processo negocial que a Câmara Municipal de Almada desencadeou no sentido da transferência de competências para as Freguesias, o respeito por estes princípios, por única e exclusiva vontade e responsabilidade da Câmara Municipal, ficam muito longe de se apresentarem como uma realidade. 

Para além desse facto, que reitero é uma opção de partida que apenas responsabiliza a Câmara Municipal, assistimos também a um avolumar quotidiano de situações de inação, desinteresse e desmazelo na execução de funções básicas de responsabilidade municipal (cito, como exemplos, a limpeza e higiene urbanas, o corte de ervas no espaço público, o tratamento de jardins, a manutenção de calçadas, o tratamento geral do espaço público, entre outros aspetos da vida do município, cuja não resolução representa uma enorme carga negativa para a vida diária dos almadenses), que correspondem, em geral, às funções e competências que a Câmara Municipal pretende transferir para as Juntas de Freguesia.

Em Almada, o processo de transferência de competências da Câmara Municipal para as Freguesias, que deveria ser, na salvaguarda do interesse de todos – sobretudo das populações –, um processo de entendimento, consenso e acordo mútuo entre as partes envolvidas, assente num diálogo construtivo e de procura efetiva das melhores soluções e respostas aos problemas concretos das pessoas, tem sido marcado, ao contrário, pela assunção de uma postura claramente oposta por parte da Câmara Municipal, que procura impor, de forma arrogante e autoritária às Freguesias, o seu ponto de vista e a sua vontade.

Esta infeliz realidade confrontou-se, em finais de junho passado, com a determinação das Assembleias de Freguesia de três das cinco Freguesias ou Uniões de Freguesias do Concelho, que deliberaram não aceitar o processo impositivo a que a Câmara Municipal as pretendia vincular, rejeitando em dois casos as propostas concretas apresentadas pela Câmara Municipal, e adiando a sua discussão no terceiro caso, o que obrigou, numa situação caricata e claramente desprestigiante para o funcionamento democrático dos órgãos autárquicos, à retirada, duas vezes em sede de reunião da Câmara Municipal, e uma vez em sede de sessão da Assembleia Municipal, de propostas agendadas sobre esta matéria sem que os processos estivessem devidamente consolidados e fossem objeto de inequívoco acordo.

As decisões das Assembleias de Freguesia demonstram, de forma clara e cabal, que um processo desta natureza tem necessariamente de ser negociado e merecer pleno acordo das partes interessadas, não é compatível com tentativas de imposição unilateral da vontade por parte da Câmara Municipal.

Não é possível, também, ignorar que, para além desta tentativa de imposição de soluções que manifestamente não servem os interesses das populações, a maioria PS na Câmara Municipal, nestes sete anos de governação que já leva, deixa um outra marca muito negativa: a recusa, aliás reiterada, da Câmara Municipal em assumir o necessário e devido acerto de contas relativo ao exercício de competências delegadas ao abrigo de contratos interadministrativos, celebrados desde 2014 com as várias Freguesias do Concelho, que a Câmara Municipal de Almada se recusa a assegurar desde o final do mandato anterior, dívida que segundo as Freguesias ascende a várias centenas de milhares de euros por tarefas efetivamente realizadas pelas Freguesias, mas financeiramente não compensadas pela Câmara Municipal, como seria sua estrita obrigação.

A salvaguarda dos interesses das populações, e o respeito pelos direitos dos trabalhadores envolvidos neste processo – que, reitero, é desejável e muito desejado que se concretize! –, exige uma alteração profunda na posição que tem sido assumida pela Câmara Municipal neste quadro. À tentativa de imposição arrogante da sua vontade, tem de suceder uma postura de diálogo aberto e franco, em condições de igualdade e equidade, sem a qual nenhum processo consistente, coerente e eficaz de transferência de competências para as Freguesias, capaz de traduzir uma melhoria efetiva e palpável na vida quotidiana dos cidadãos, poderá ser concretizado. O apelo é, pois, a que prevaleça na Câmara Municipal o bom senso e a razoabilidade, substituindo a arrogância que tem caracterizado este processo até ao momento.

João Geraldes

Membro da Assembleia Municipal de Almada, eleito na lista da Coligação Democrática Unitária

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