O Regresso à justiça do “olho por olho, dente por dente”?
Cinco famílias, mais de uma dezena de pessoas, incluindo várias crianças e pessoas com deficiência física, foram “condenadas” a viver entre escombros durante quase oito meses. As suas condições de vida já eram más antes dessa condenação; a partir de 1 de outubro do ano passado, alguém com capacidade para tal decidiu que, para estas pessoas, essas condições deviam passar a ser ainda piores.
Na terceira década do século XXI da era Cristã, quando o sacrossanto princípio ultraliberal do “elevador social” apenas funciona no sentido descendente, ao contrário do que prometiam (e ainda prometem) os arautos das políticas neoliberais, e o estádio de civilização humana a que chegámos é este – os pobres cada vez mais pobres, os ricos apodrecem de tanta riqueza, e os “remediados” aproximam-se cada vez mais dos primeiros –, vemo-nos confrontados com um comportamento por parte de demasiados daqueles que são chamados decisores políticos, que inopinadamente regressam ao espírito “justiceiro” do olho por olho, dente por dente.
Três exemplos bem perto da nossa porta.
1
Parece ter terminado, há apenas alguns dias e após oito meses (!) de espera, a saga do realojamento dos residentes sobre a vala de drenagem de águas pluviais existente no bairro do 2º Torrão, na Trafaria.
Cinco famílias, mais de uma dezena de pessoas, incluindo várias crianças e pessoas com deficiência física, foram “condenadas” a viver entre escombros durante quase oito meses. As suas condições de vida já eram más antes dessa condenação; a partir de 1 de outubro do ano passado, alguém com capacidade para tal decidiu que, para estas pessoas, essas condições deviam passar a ser ainda piores.
Porquê? Simplesmente porque não eram consideradas “elegíveis” no âmbito de nenhum dos programas de realojamento de urgência – sim, de urgência! –, que era indispensável assegurar perante o risco de segurança em que se encontravam as habitações que ocupavam.
A lógica de quem decide foi simples, mas perversa. Essas pessoas eram (os) verdadeiros “pecadores”: pecavam por não possuir uma parte dos papéis de identificação “exigidos pela lei” – esta coisa de transformar a vida das pessoas em papéis (ou em números, é a mesma coisa), faz parte também deste estado ultraliberal, totalitário e profundamente desumanizado que nos impõem –, “pecavam” por ter que viver nas condições precárias em que eram obrigadas a viver, e “pecavam” também pelo facto das suas residências se encontrarem num local que apresentava riscos de segurança.
O que se faz aos “pecadores”? Castiga-se! Como Talião, olho por olho, dente por dente: desenrasquem-se à procura de uma casa para viver (daí lavamos as nossas mãos, o que para além de Talião invoca também Pôncio Pilatos), entretanto vivam entre escombros!
Há poucos dias os “pecados” foram redimidos; mais de uma dezena de pessoas foi retirada do meio dos escombros em que viveu durante quase oito meses. Agora, como sabemos que acontece “à porta fechada”, a Câmara Municipal, e os seus principais responsáveis, já podem vangloriar-se de ter cumprido esta missão, ainda que tal missão devesse, de facto, “estar cumprida” logo no primeiro dia, quando as máquinas iniciaram o trabalho de demolição das habitações precárias neste bairro de Almada. Outrossim é saber se a solução encontrada é boa ou não; relativamente a isso, cá estaremos para ver…
2
O património habitacional da Câmara Municipal de Almada é bastante vasto. Em todo o Concelho, mais de 2500 fogos de habitação são propriedade do Município.
Destinados ao alojamento de famílias que não possuem condições de acesso ao mercado de arrendamento, nem condições económicas para aquisição de habitação própria – também aqui fruto das políticas ultraliberais prosseguidas há muitas décadas no nosso país –, muitos desses fogos foram ilegalmente ocupados há quase cinco anos. Não há números exatos, a Câmara Municipal tem recusado fornecê-los, mas não estaremos muito longe da realidade quando falamos em várias dezenas de fogos municipais ocupados ilegalmente.
À ocupação ilegal sucedeu, inevitável, a ligação (também ilegal) do abastecimento de bens essenciais e indispensáveis às mínimas condições de vida, eletricidade e água. Sendo que esta é um bem indispensável à vida, considerada, por isso, um direito humano pela Organização das Nações Unidas.
É necessário, naturalmente, encontrar uma solução para repor o direito da autarquia relativamente à sua propriedade. Mas essa solução não pode passar pela aplicação, também aqui, desse espírito próximo da Lei de Talião, desse espírito próximo do olho por olho, dente por dente: “roubas” água, tiro-te o direito a bebê-la! Condeno-te à sede!
O “roubo” de água, que a ocupação ilegal dos fogos municipais e as ligações clandestinas traduzem, não pode ser utilizado como argumento para impedir o acesso de quem quer que seja a este bem imprescindível.
O “roubo” de água resolve-se medindo o consumo, faturando e cobrando o respetivo pagamento aos utilizadores, o que passa não pelo corte das ligações ilegais e por isso do acesso à água – como foi feito há uns dias em diversas situações desta natureza –, mas pela instalação de contadores provisórios, que permitam precisamente essa medição, faturação e cobrança dos consumos realizados. E sim, nem que sejam contadores instalados durante um ou dois meses!
Porque também é necessário, nos termos da Constituição da República Portuguesa, assegurar o direito a uma habitação adequada e condigna a todas as famílias portuguesas, incluindo as que ilegalmente ocuparam habitações municipais, e todos estes processos estão a ser dirimidos em tribunal, como deve acontecer num Estado de Direito Democrático sempre que não é possível um entendimento por vontade livre das partes.
3
O terceiro exemplo não ilustra tão eloquentemente este espírito de Velho Testamento, mas represente, também ele, uma forma desumana de tratar os problemas com que a sociedade se confronta.
Em 2019, há por isso sensivelmente quatro anos, uma instituição com mais de quatro décadas de trabalho intenso no apoio social às famílias, em particular às crianças e idosos, inicialmente da Freguesia de Cacilhas, mas hoje aberto a todo o espaço municipal, foi obrigada – ainda, e uma vez mais, por alegadas razões de segurança –, a abandonar as instalações onde desenvolvia a sua meritória atividade.
Falo do Centro Paroquial de Bem-Estar Social de Cacilhas, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) verdadeiramente forçada, por razões de segurança da arriba em Cacilhas, a “andar com a casa às costas” desde 2019.
Inicialmente na Romeira, posteriormente na antiga Escola Básica Conde de Ferreira, em Almada, por cedência ao abrigo de um contrato de comodato celebrado com a Câmara Municipal (onde se mantém, pelo menos até agosto próximo…), não obstante as dificuldades que esta situação representa, esta instituição e os seus profissionais lutaram, resistiram, e asseguraram que a atividade nunca fosse interrompida.
Atualmente, a IPSS apoia 78 crianças, 30 idosos (apoio domiciliário), e assegura 28 postos de trabalho permanentes nas diferentes funções da instituição.
Mesmo perante números tão eloquentes, sem dúvida ainda muito expressivos quando pensamos nas insuficiências que o Concelho de Almada vive em matéria de apoios sociais desta natureza, o Centro Paroquial de Bem-Estar Social de Cacilhas vive, nestes dias, uma situação “sentença de morte”: anuncia-se o encerramento de toda a sua atividade, com o desemprego de 28 trabalhadores e trabalhadoras e o abandono do apoio a mais de 100 utentes e respetivas famílias, agora confrontadas com a urgência de encontrar uma alternativa, com os enormes transtornos que essa situação representa para as vidas de todos os envolvidos.
Permitir que um tal encerramento ocorra, independentemente das razões que determinem a situação vivida – e, pelo que sabemos, são razões perfeitamente atendíveis por uma autarquia como a Câmara Municipal de Almada –, constitui uma postura de desleixo e abandono de necessárias e indispensáveis respostas sociais de primeira necessidade e importância, que, a acontecer, traduzirá uma profunda insensibilidade social e humana por parte dos responsáveis que não forem capazes de encontrar as soluções adequadas a esta situação.
Uma insensibilidade e um desleixo impensáveis e inaceitáveis nesta terceira década do terceiro milénio, que alguns tanto gostam de afirmar como uma era de progresso, de desenvolvimento e de bem-estar, mas que afinal nos confronta com inusitada frequência, com um tão violento quanto também ele inusitado, retrocesso civilizacional em tantos domínios da nossa vida coletiva.
Almada Online, CDU, Crónica, João Geraldes, Opinião