Almada, cidade do teatro
Agora que conheço o espectáculo posso adiantar que, em rigor, não há um texto mas uma partitura, e prosseguindo-a, a actriz atinge uma notável contenção na narrativa.
Devo começar Novembro como acabei a crónica de Outubro. Falava da estreia da peça “O Elogio do Riso” no Teatro Municipal Joaquim Benite (TMJB). Então, só conhecia que os seus criadores, a própria comediante Maria Rueff, o encenador Rodrigo Francisco e Hajo Schüler, director artístico, actor e encenador alemão da companhia de teatro de máscara de Berlim Familie Flöz, pesquisavam sobre o riso no teatro, a fim de levantarem uma narrativa no sentido de homenagear o comediante de palco.
Agora que conheço o espectáculo (de 31-10 a 30-11) posso adiantar que, em rigor, não há um texto mas uma partitura, e prosseguindo-a, a actriz atinge uma notável contenção na narrativa. Aqui temos a comediante esvaziada dos habituais trunfos da sua comicidade. Inteligência e sorte a dela que absorveu o que se lhe pedia para o espectáculo, de facto um anti-herói do “Elogio do Riso”, por onde passam tantas memórias dentro dos bastidores de um teatro. Memórias dele e nossas também.
Entre o solilóquio e a fisicalidade do “nosso contínuo/porteiro/fiel de armazém”(definição de Maria Rueff e Rodrigo Francisco, no programa), lembro o portentoso cadeirão que irrompe por entre portas metálicas e tem o seu lugar no cenário em construção (Marta Carreiras). Segundo a narrativa, ali se vai montar o Hamlet por uma “companhia de ingleses”, especialista em Shakespeare. E quando a vemos minúscula, clownesca, sentar-se no cadeirão gigante é quando me lembro da comédia de Ionesco “O Rei está a morrer”. Quando no início a comediante nos aparece irreconhecível (figurino Dino Alves) de passo tremido em compasso miudinho, atravessando o grande palco, qual Charlot – mais tarde de chapéu de coco -, e tateia a subida da grande escada na parede encimada por um Santo, ouvem-se as primeiras gargalhadas. Finalmente, ela sobe e sacode o pó de São Filipe Nery, o Santo da Alegria, tão significativo na religiosidade da Actriz. E é quando me lembro do “Santo Amianto” colocado no fundo da caixa de palco do Teatro São Luiz, aqui por mera superstição (quem as não tem? ), pois que não é um santo, provável adereço cenográfico sobrevivente do incêndio do Teatro (1914), com a imagem de um bispo que veio a ser “baptizado” de Santo, protector, com o nome de Amianto, alusão clara ao material de elevada resistência química e térmica. Confessa-me com graça uma amiga no São Luiz “protege-nos de tudo, acabámos por comprar uma luz de presença para estar sempre ligada, porque se acredita que quando desligávamos a luz por algum motivo aconteciam coisas…”
Sim, no teatro há a fragilidade da própia vida! E prossigo com a peça em cena no Teatro Municipal Joaquim Benite. Ganharia se fosse na sala pequena? Perplexidade de algum público mais atrás na plateia, na ânsia de querer ouvir palavras do solilóquio que são murmúrios. Talvez. Mas perdia-se aquela imensidão do palco e a ternura transformada em sorriso de ver aquele velho ser fiel ao “armazém” do teatro quase perdido na velocidade do tempo, mil coisas a acontecer num tempo que já não é o seu…E como não pensar na personagem Firs, do Cerejal/Jardim das Cerejas, de Antón Tchekhov, aquele dedicado criado velho que serviu a vida inteira, e no fim todos vão embora e dele se esquecem, ali ficando entregue às memórias da casa, esperando a morte. Enfim, estou a ir além, mas é o que também valorizo neste espectáculo de teatro contra a corrente, quanto a mim metáfora do que se foi ou vai perdendo. Muito do que pensei ao sorrir com a ternura daquele velho clown, alheio ao que já não é seu, ainda assim zelando.
Nada é profundamente triste, tudo é cómico – atenção às Conversas com o Público, a propósito do Elogio do Riso, todos os sábados às 18h, até ao final da carreira do espectáculo;
Também na Galeria do Teatro está a exposição “A Graça da Desgraça – Comédia e Tragédia em Mário Viegas”, coproduzida pelo Museu Nacional do Teatro e da Dança e pela Companhia de Teatro de Almada (CTA).


Honrando ainda o título, Almada é mesmo cidade do teatro. Sempre foi. Veja-se a Mostra de Teatro Almada 2025 na sua 29a edição, em que o público é chamado a conviver todo este mês de Novembro com 22 criações teatrais apresentadas por 20 grupos com actividade regular no Concelho, cruzando os mais diversos estilos e linguagens, se pensarmos em universos que vão das criações originais a autores consagrados como Tchekhov a Ibsen, a Kafka e Gisela Cañamero, em vários espaços que os acolhem, como o Teatro-Estúdio António Assunção, a Incrível Almadense, o Auditório Fernando Lopes-Graça, o Solar dos Zagallos, o Salão das Carochas, o Casino da Trafaria ou o Auditório Costa da Caparica, como leio no programa.
Já no dia 1 de Novembro assisti a uma peça de Alexandre Pieroni Calado, que também encenou, “O Grande Despertar – Visões de Tirésias”, com a interpretação excelente de Paula Garcia, que no final agradeceu o habitual acolhimento ao Teatro Extremo, sediado no Teatro-Estúdio António Assunção. Na verdade, ainda o ano passado a vi com Sandra Hung, ambas actrizes brilhantes em textos de Elfriede Jelinek, agraciada com o Nobel de Literatura de 2004, sob a mestria da direcção de Rogério de Carvalho, o saudoso encenador de Almada, que trabalhou com as actrizes o fluxo musical de vozes e contra-vozes em textos de dificuldade extrema da autora austríaca, ali mesmo no palco do António Assunção.
Cito das peças que me suscitam interesse, “Uma Pedra no Sapato”, de Francisca Silva e Rui Silvares, a acontecer dia 29 no Salão das Carochas. Leio na sinopse que, sendo espectáculo de Teatro Comunitário, parte da investigação histórica e patrimonial de Almada. Em síntese, a situação geográfica de Almada na margem do Tejo, que separa e liga a Lisboa, contribuiu para se criar uma imagem de oposição face à capital e ao poder central. A encenação é de Ana Nave, uma actriz de Almada, cujos palcos da Capital são seus, mas sempre ligada ao Concelho com distintos trabalhos de encenação, e que há muito admiro.
Saborosos dias, noites de teatro, em Almada!





