Ex-ministro do Ambiente contradiz ex-presidente da Transtejo

Três audições parlamentares depois, os motivos e responsabilidades nos atrasos na renovação da frota ainda não foram esclarecidos

O ex-ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, não tem memória de ter discutido proposta da Transtejo para avançar logo em 2019 com navios eléctricos. Ex-presidente da Transtejo disse que a tutela quis então o gás natural.

Três audições parlamentares depois, o mistério sobre as razões e responsabilidades para os atrasos na renovação da frota da Transtejo/Soflusa ainda não está esclarecido.

O ex-ministro do Ambiente afirmou que não se recorda de “em momento algum, de ter discutido com quem quer que fosse, a possibilidade de usar tecnologia eléctrica” como forma de propulsão dos navios que a Transtejo propôs adquirir em 2019. João Pedro Matos Fernandes que foi ouvido na passada Quarta-Feira na Comissão Parlamentar de Economia, Obras Públicas, Planeamento e Habitação, contraria assim as declarações feitas pela antiga presidente da empresa de transporte fluvial na semana passada.

Na audição parlamentar de 13 de Setembro sobre a aquisição de navios elétcricos e baterias pela Transtejo (a requerimento do PCP, PSD, PS, BE e IL), Marina Ferreira afirmou que a empresa chegou a propor uma solução totalmente eléctrica em 2019, depois de várias consultas feitas a operadores de mercado, mas que esse processo tinha sido interrompido porque a tutela decidiu que os novos navios seriam a gás natural. Este acabou por ser anulado quase um ano depois de ter sido lançado, devido à falta de propostas, dada a opção de integrar no mesmo procedimento o fornecimento e a manutenção de navios a gás natural liquefeito (GNL).

Marina Ferreira não especificou quem na tutela deu ordem para optar por navios a gás natural, que considerou não serem os mais adequados para a travessia do Tejo, mas sublinhou que cabia à tutela tomar decisões de política energética onde se incluía o modelo de propulsão da nova frota. A ex-presidente da Transtejo defendeu que, por si, teria avançado logo para os navios eléctricos, mas quem define é a tutela. “Se calhar podíamos ter avançado mais depressa se tivéssemos ido logo para os navios eléctricos. Mas eles estão aí”.

Matos Fernandes, que deteve a tutela da Transtejo enquanto ministro do Ambiente até 2022, confirmou que teve conhecimento de uma proposta inicial a diesel/eléctrica feita pela empresa e, também sinalizada pela gestora, que foi afastada pelo Governo. O Executivo pediu então à empresa para encontrar uma solução que pudesse ser financiada por fundos comunitários.

“Não tenho memória alguma de ter no início do processo ter discutido essa solução [navios totalmente eléctricos]”. Duvida que isso tenha acontecido e acha difícil que a solução tenha sido apresentada de forma séria. Matos Fernandes argumenta que no final de 2019, quando se decidiu ir para os navios eléctricos após o concurso a gás natural natural ter falhado, foi ele quem deu conforto à empresa para a avançar com a compra de 10 navios eléctricos, tendo-se envolvido em conversas com operadores e consultores para avaliar a viabilidade do projecto.

Perante a insistência dos deputados para esclarecer a contradição, com a deputada da IL Joana Cordeiro a questionar quem estaria a mentir e, depois de ter elogiado o desempenho da gestora à frente da Transtejo, Matos Fernandes afirmou que “Lembro-me bem dois anos depois, ou ano e meio depois, de borregar o concurso a gás e de ter sido eu com a minha acção a dar confiança a todos para apostar na tecnologia eléctrica. O Governo não era só eu, terá a drª. Marina tido essa conversa com o secretário de Estado José Mendes [quem detinha a tutela directa da empresa no ministério liderado por Matos Fernandes]? Não tenho a mais pálida memória“, reafirmou.

Já antes, a deputada do Bloco de Esquerda tinha invocado uma expressão brasileira, Algo de errado não está certo (nestas audições), para insistir que é preciso apurar responsabilidades pelas decisões e perceber o que levou a que fossem tomadas e mudadas decisões que atrasaram o processo de renovação da frota. Também Nuno Carvalho do PSD questionou as mudanças sobre o tipo de propulsão, de diesel/eléctrico para totalmente eléctrico (solução estudada pela Transtejo), para gás natural e novamente para eléctrico.

O ex-ministro foi chamado ao Parlamento para explicar a opção de separar os concursos de compra de navios eléctricos do fornecimento das baterias para estas unidades. Este último contrato feito por ajuste directo foi chumbado pelo Tribunal de Contas tendo levado à demissão da anterior gestão da Transtejo. O parlamento já ouviu a ex-presidente e a actual gestora e, vai ouvir ainda o actual ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, que herdou o dossier da renovação da frota em 2022. Mas não tem planos para chamar o ex-secretário de Estado dos Transportes, José Mendes.

O ponto de partida para estas audições foi a recusa de visto do Tribunal de Contas a este contrato para a compra de baterias, que entretanto já foi adjudicado por concurso público ao mesmo fornecedor. No entanto, a audição da ex-presidente da Transtejo suscitou o tema do concurso para a compra de navios a gás natural lançado em 2019 e cuja anulação atrasou num ano a renovação da frota da empresa. Segundo a presidente da empresa, a operação só deverá iniciar-se no segundo semestre de 2024.

Até os socialistas, grupo parlamentar e Governo, reconhecem que este processo tem tido “incidentes”, como referiu o deputado André Pinotes Batista, o que é justificado com o argumento de que a mudança de paradigma energético tem riscos.

Já Matos Fernandes reafirmou o carácter inovador da renovação de frota da Transtejo, assumindo ainda a opção, muito criticada pelo Tribunal de Contas, de separar a aquisição dos navios da aquisição das baterias. “Tenho toda a responsabilidade”, disse, referindo que teria sido um erro comprar logo as baterias, quando a tecnologia estava sempre a evoluir e os preços a baixar, além de que juntar as duas coisas num concurso “seria um risco técnico muito grande” para a Transtejo. “Tomámos a decisão com a informação que tínhamos disponível”.

Matos Fernandes já não era ministro quando foi lançado o ajuste directo em vez do concurso inicialmente previsto, mas percebe que a Transtejo se tenha confrontado, num processo inovador, com a constatação de que havia apenas “um fabricante de baterias compatível com o protótipo de navio que estava a ser construído”, tendo seguido para o ajuste directo.

“Percebo a decisão da Transtejo e percebo a posição do Tribunal de Contas que esperava um concurso, mas acho que quando as coisas  são bem explicadas, o Tribunal decide com bom senso”, apesar de lamentar a linguagem usada no acórdão onde se compara a transação à compra de carros sem motor, deu ainda como exemplo o Metro de Lisboa, que lança os toscos para construir o túnel e a construção das estações em concursos separados.

O ex-ministro deixou um grande elogio a Marina Ferreira. “Foi uma belíssima presidente, encontrou a empresa em grandes dificuldades”, cujas culpas atirou para o Governo do PSD/CDS “que nada fez pela Transtejo para além de tentar adjudicar a privados e, entregou a empresa melhor do que a recebeu”. Fez também eco dos argumentos da gestora sobre o peso das regras da administração pública na capacidade de decidir dos gestores e, considerou ainda que o resultado do concurso público que resultou na escolha do mesmo fornecedor parece provar que a “culpa deste último atraso é do Tribunal de Contas e não da Transtejo“.

A adjudicação dos nove sistemas de baterias por 16 milhões de euros, menos 250 euros do que o preço base, foi adjudicada à Astilleros Godán, a empresa que está a fabricar os navios eléctricos para a Transtejo. O contrato terá ainda de ser autorizado pelo Tribunal de Contas. Mas mais do que as baterias, o que agora está a atrasar a operação da nova frota parece ser a instalação dos postos de carregamento nos terminais fluviais.

O processo de renovação de frota da Transtejo foi dividido em três concursos que já totalizam 82 milhões de euros (ME): a construção de dez navios eléctricos a partir de um protótipo desenvolvido pelos estaleiros das Astúrias para a empresa portuguesa que foi adjudicada por 52 ME no final de 2020. A primeira unidade, a única que tinha bateria, foi entregue e várias estão prontas para seguir para Lisboa, aguardando as baterias; o fornecimento de nove sistemas de baterias que foi entregue este Verão por 16 ME à mesma empresa que está a construir os navios, a Astilleros Godán, por concurso público, após um ajuste directo chumbado e, que aguarda a autorização do Tribunal de Contas e; a instalação de postos de carregamento eléctrico nos quatro cais operados pela empresa, dois na margem norte e dois na margem sul, que foi atribuído à CME (Construção e Manutenção Eletromecânica, S.A. / Sociedade de Empreitadas e Trabalhos Hidráulicos, S.A.) por 14,4 ME há cerca de um ano.

Todo este processo da renovação da frota da Transtejo, sofreu também atrasos significativos devido à necessidade de obter licenciamentos por parte de várias entidades, incluindo a Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG).

Os navios mais antigos da empresa que fazem a travessia fluvial têm várias décadas, sobretudo os cacilheiros e, estão constantemente a precisar de reparações caras e morosas, o que tem causado inúmeras supressões de serviços, prejudicando as milhares de pessoas que usam estes serviços. Segundo os testemunhos dados por vários deputados, os passageiros da Transtejo são estigmatizados no acesso ao emprego por estarem dependentes para cumprirem os horários de um meio de transporte que não é fiável.

A Transtejo é responsável pela ligação do Seixal, Montijo, Cacilhas e Trafaria/Porto Brandão, a Lisboa, enquanto a Soflusa faz a travessia entre o Barreiro e o Terreiro do Paço.

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Sofia Quintas

Directora e jornalista do Almada Online

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