Inês de Medeiros questiona imparcialidade da Amnistia Internacional Portugal
ONG esteve no terreno no realojamento do Bairro do 2º Torrão, e ao contrário do afirmado pela presidente da CMA ouviu todas as partes
Tudo aconteceu na passada reunião da Câmara Municipal de Almada (CMA), no dia 7 de Abril. Em resposta a um apelo feito pela vereadora do Bloco de Esquerda (BE), Joana Mortágua. Inês de Medeiros, colocou em causa a imparcialidade da Amnistia Internacional Portugal (AI PT), nas declarações públicas que emitiu aquando das demolições e realojamentos efectuados no Bairro do 2º Torrão, em Outubro de 2022.
A vereadora Joana Mortágua apelou para que se tivesse o cuidado “enquanto orgão representativo do Estado, de que no Ginjal não se repetir o que foi feito no 2º Torrão, quando foram feitos os realojamentos por causa da vala, processo esse que foi condenado até pela Amnistia Internacional pela sua falta de humanidade, é um apelo a que tratemos estes casos com humanidade”, estabelecendo assim um paralelo entre os moradores do 2º Torrão e os do Ginjal, pois em ambos os casos existe uma situação de perigo, sinalizada pelo Serviço Municipal de Protecção Civil (SMPC) de Almada.
Inês de Medeiros não gostou e disse que lamentava “muito que a Amnistia Internacional se tenha manifestado em pareceres e opiniões sem consultar os serviços da CMA. Eu tenho imenso respeito pela Amnistia Internacional mas parece-me que o mínimo que podia fazer era ter ouvido todos os intervenientes antes de pronunciar estas opiniões, que aliás tanto quanto me lembro, até foram pronunciadas quase a título individual pelo porta-voz da Amnistia Internacional, posso estar errada agora já não me lembro. Se houve coisa que não aconteceu no Segundo Torrão foi falta de humanidade, isso é a sua interpretação política, se me permite, a interpretação política que transmitiu o porta-voz da Amnistia Internacional e que aparece como sendo uma verdade, coisa que eu desafio qualquer um a vir-nos a demonstrar que houve essa falta de humanidade.”
Mais adiante Inês de Medeiros voltou ao tema tendo dito: “Não aceito a crítica de falta de humanidade, quem acusa que demonstre que houve essa falta de humanidade e portanto e aqui fica a minha resposta para a próxima vez, e reitero estamos sempre disponíveis para esclarecer e dar todos os esclarecimentos e depois cada um fará o julgamento que entende melhor. Agora, estar a fazer julgamentos e a tornar públicas posições sem sequer ouvir a Câmara, isso é que não me parece muito correcto, seja de que entidade for, sobretudo uma entidade que merece não apenas o nosso respeito, como sobretudo temos que a salvaguardar pela sua importância a todos os níveis nacionais mas também internacionais, portanto espero que não seja instrumentalizada.”
O Almada Online contactou a Amnistia Internacional Portugal, que através da sua Assessoria de Imprensa declarou que: “A Amnistia Internacional – Portugal (AI PT) questionou o gabinete da Presidente da Câmara, em Maio de 2023, através do gabinete de comunicação, que não respondeu às perguntas então colocadas pela AI PT.” Relativamente à nossa pergunta se esta avaliação sobre o 2ª Torrão teria prejudicado o país a nível de direitos humanos no relatório anual internacional da Amnistia Internacional foi-nos dito que “A AI PT não estabelece nenhum ranking no seu relatório anual, faz uma avaliação da situação dos direitos humanos em Portugal, e nele não consta nenhuma referência a esse caso em particular.”
No seu relatório anual de 2022 referente a Portugal pode ler-se que relativamente ao Direito à Habitação: “Persistiram relatos de desalojamentos forçados que deixaram as pessoas em piores condições de habitação – incluindo, em alguns casos, sem-abrigo –, uma situação que afectou desproporcionalmente as pessoas de etnia cigana e afrodescendentes.”
Na altura das demolições no 2º Torrão, quem vos escreve conversou com o à época director executivo da AI PT, Pedro A. Neto, autor do comunicado da AI PT onde pode ler-se que “a Amnistia Internacional – Portugal tem acompanhado a situação de realojamento do bairro do Segundo Torrão, em Almada, tendo já reunido com os moradores do bairro nos dias 29 de Junho e 7 de Setembro, e ainda com a Câmara Municipal de Almada (CMA) a 25 de Julho.” Assim, ao contrário do que a presidente da CMA disse, a AI PT reuniu com os serviços da autarquia sobre o assunto em causa. Pedro A Neto também nos disse na altura ter sido entregue nessa reunião com a CMA o “Guia para prevenção de desalojamentos forçados“, da autoria da Amnistia Internacional, onde são mencionadas todas as obrigações a ter em conta para que os Direitos Humanos de quem é realojado sejam salvaguardados.
Mais à frente é também afirmado que “tendo em conta todas as implicações em matéria de direitos humanos que esta situação envolve, a Amnistia Internacional tem trabalhado com as partes envolvidas, no sentido de fazer com que as melhores soluções sejam encontradas e implementadas, garantindo que todas as pessoas veem os seus direitos assegurados neste processo de realojamento, conforme definido pelas normas internacionais de direitos humanos sobre o direito à habitação adequada. Numa primeira visita ao bairro, a 29 de Junho, a organização alertou a comunidade para os seus direitos e para as obrigações que as autoridades locais e outros representantes do Estado detêm na prevenção de desalojamentos forçados, partilhando o seu “guia para a prevenção de desalojamentos forçados”. Presentes na reunião, estavam os representantes de várias famílias visadas, que relataram à Amnistia Internacional como lhes tinha sido transmitido o plano de realojamento provisório, com duração prevista de três anos, partilhando os seus receios quanto ao mesmo. Estes receios foram registados e examinados pela Amnistia Internacional, tendo sido transmitidos em audiência com a CMA a 25 de Julho. Já em Setembro, a organização voltou ao Bairro do Segundo Torrão para verificar como estava a decorrer o avanço de todo o processo.” Não só a AI PT reuniu com a CMA, como lhe transmitiu todos os receios manifestados pelos moradores do 2º Torrão relativamente às demolições e realojamento, que lhes foram comunicados na primeira pessoa numa visita prévia ao bairro.
A AI PT chama a atenção para os seus objectivos enquanto ONG internacional de Direitos Humanos no comunicado, “Um dos nossos objectivos é apelar para um espírito construtivo de diálogo entre os moradores visados do Segundo Torrão e a Câmara Municipal de Almada. Este diálogo adequado entre a Câmara Municipal e as pessoas que ela serve auxiliará a uma boa resolução de problemas, evitando tensões graves que são frequentes neste tipo de processos de realojamento e demolição das casas, quando alguma das partes está de má-fé.”
Pode ainda ler-se que “Na audiência com a CMA, a Amnistia Internacional – Portugal ressalvou esta preocupação [sobre o processo do levantamento que determinou que casas demolir], pedindo que o relatório do SMPC, pelo qual todo o processo de realojamento tem sido orientado, fosse partilhado com a organização, para que se pudesse verificar o rigor e a abrangência do levantamento de casas. No entanto, apesar da solicitação, a CMA não disponibilizou o relatório, referindo mais tarde que “estes relatórios, dado o seu conteúdo, são apenas entregues às entidades públicas e oficiais”. A Amnistia Internacional, não sendo uma entidade pública / estatal, é uma entidade oficial e reconhecida em Portugal, com estatuto de utilidade pública neste país.”
“A Amnistia Internacional relembrou ainda a CMA que devem ser igualmente ponderadas possíveis limitações de mobilidade física de moradores, para que lhes sejam atribuídas casas provisórias acessíveis que não lhes retirem autonomia e liberdade. Sendo difícil a garantia de um alojamento em rés-do-chão e/ou em prédios com elevador, que pelo menos estas situações sejam prevenidas com cadeiras elevatórias a instalar nos prédios.”, diz ainda a ONG no seu relatório. Passados três anos, o Almada Online conhece pelos menos um caso em que tal não foi salvaguardado, estando uma idosa com sérios problemas de locomoção, apesar deste facto ser vísivel e possuir atestado médico que comprova a sua incapacidade, alojada num andar sem elevador nem cadeira elevatória.
A AI PT relata ainda no comunicado que “a falta de uma comunicação clara e transparente com a CMA é mais um desafio mencionado repetidamente pelos moradores, que não se sentem devidamente informados e ouvidos.”, e também que “a Câmara Municipal de Almada em vez de contar com a sociedade civil e com a comunidade para resolver os problemas locais e ouvir a população a quem serve, parece estar a antagonizar a própria sociedade civil acusando-a da causa de desespero e drama para as famílias. No entanto, o desespero e o drama que vivem estas famílias é causado – de acordo com os testemunhos das famílias que ouvimos – pela pouca clareza, esclarecimento, proximidade, e até por um discurso por vezes intimidatório da Câmara Municipal junto da população a quem serve“, salienta a AI PT no mesmo comunicado.
“Para as famílias visadas do Segundo Torrão, é fundamental estar garantida uma casa provisória, que cumpra os padrões internacionais de adequação, antes da data de demolição da casa actual, de forma que não se verifiquem desalojamentos forçados. Só assim estará protegido o direito à habitação adequada, consagrado em vários tratados de direitos humanos regionais e internacionais, por forma a que as famílias possam viver em segurança, paz e dignidade.”, diz claramente o comunicado, sendo que muitas famílias do 2º Torrão na véspera da demolição das suas casas não sabiam ainda onde iriam morar no dia seguinte.
Muitos agregados passaram por uma pensão na Costa da Caparica, outra sobrelotada em Lisboa, pelo parque de campismo de Monsanto e pelo Seminário de Almada, antes da CMA lhes ter encontrado uma habitação temporária durante três anos, em muitos casos fora do conselho de Almada, obrigando os agregados a alterarem toda a sua vida, a escola dos filhos, o seu local de trabalho, no fundo a sua vida. Houve agregados que estiveram em todos estes sítios, efectuando quatro mudanças. Há ainda quem nunca tenha sido inserido no realojamento sendo considerado como sem abrigo, como é o caso de Sebastião Tomás, que dorme onde amigos lhe dão guarida.
Os três anos era data em que se supunha estarem concluídos os 95 fogos de habitação definitiva prometidos pela CMA no processo de realojamento do 2º Torrão a estes agregados, que no entanto nunca foi assumido por escrito. Passados três anos, como o contrato com o IHRU terminou, estes agregados vêm-se agora obrigados a nova mudança para casas municipais no concelho de Almada, que muitas vezes não têm condições de habitabilidade, ou as têm em pior estado de onde residem agora, dado o estado de degradação avançado do parque habitacional municipal. De novo obrigados a alterar as suas vidas, pois as casas onde habitam serão entregues pelo IHRU a outros agregados. Nenhum dos 95 fogos está construído ou com tem construção iniciada à data que escrevemos esta notícia.
No Ginjal são cerca de 50 os habitantes, que apesar de terem ocupado indevidamente casas em risco de derrocada de privados, têm ali o seu único tecto há vários anos, e para os quais terá de se encontrar uma solução alternativa de habitação, mesmo que esta seja temporária ou em coordenação com os proprietários. “Estes edifícios serão emparedados, por forma a reduzir o perigo”, disse a presidente da CMA durante a reunião. Ou seja, são cerca de 50 pessoas que não terão tecto a que chamem seu para onde voltar.
Nesta Quinta-Feira 10 de Abril, será criada uma Zona de Concentração de Apoio à População (ZCAP), que como afirmou a vice-presidente da CMA, Teodolinda Silveira, na reunião de dia 7, “ficará sediada na escola secundária Anselmo de Andrade. Tendo em conta que estamos em pausa lectiva facilita a situação, uma vez que a escola não tem alunos, e portanto facilitará a criação dessa zona de apoio à população, que será acompanhada pelo serviço social [da CMA] que irá fazer a caracterização de todas as situações que ali vão estar. Temos a informação de que são cerca de 50 pessoas, não temos a certeza se todas pornoitariam ali [no Ginjal] se não pernoitariam, supostamente sim, mas será o serviço de atendimento e acompanhamento social que irá fazer toda esta caracterização e conhecer as situações das pessoas. Nesse âmbito irá propor às pessoas, que no final de toda essa análise se verifique que estão sem tecto, uma solução para a sua situação.” Como as habitações no Ginjal não lhes pertencem, nem pertencem à CMA, as pessoas para as quais não seja encontrada uma solução habitacional alternativa, serão declaradas sem abrigo. O mesmo aconteceu no 2º Torrão a Sebastião Tomás e caso a imprensa e as organizações que trabalhavam no bairro não tivessem feito pressão, teria sido declarado até a famílias com menores, sendo-lhes retiradas as crianças. Marta sabia que seria assim, por isso se barricou em casa com as suas crianças e se recusou a sair até ser englobada no realojamento, promessa feita pela CMA em directo à SIC. Ainda assim passou pela pensão na Costa da Caparica, pela pensão em Lisboa e foi realojada noutro concelho, estando agora na iminência de voltar apesar de ter desabafado ao Almada Online que o que lhe foi mostrado como opção pela CMA “não tinha condições para as crianças”. As crianças que terão de mudar de escola a meio do ano lectivo, as mesmas crianças que nos meses que estiveram em Lisboa acordavam às cinco da manhã todos os dias, para serem transportadas pela CMA à escola na Trafaria. O receio de perderem o direito a um dos 95 fogos prometidos, faz com estes agregados que estão de volta ao concelho aceitem o que lhes é oferecido, esteja em que condições estiver, e mudem de novo as suas vidas, mais uma vez.
A Amnistia Internacional é um movimento global de mais de 10 milhões de pessoas, constituída por membros e activistas residentes em mais de 150 países e territórios, que desenvolvem campanhas para terminar com graves abusos a nível de direitos humanos. Fundada em 1961 em Londres, pelo advogado britânico Peter Benenson, que inspirado no caso de dois estudantes portugueses presos pela repressão salazarista por brindarem em público à liberdade, publicou o artigo “Os Prisioneiros Esquecidos” no jornal “The Observer”, em que apelava à libertação daqueles que chamou de “prisioneiros de consciência” – todas as pessoas detidas por exercerem a sua liberdade de expressão – e a julgamentos rápidos e justos para todos os presos políticos.
A visão e missão da Amnistia Internacional é a de que cada pessoa usufrua de todos os direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e noutras convenções internacionais de direitos humanos. A Amnistia Internacional declara-se independente de qualquer governo, ideologia política, interesse económico ou religião, sendo o seu financiamento proveniente principalmente dos seus membros e de donativos. “Porque nenhum governo, nem ninguém falará mais alto que a luta pelos Direitos Humanos. E nenhuma situação está além da esperança.”, declaram.
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